Tuesday, May 7, 2013

161 - As Mulheres da Fonte Nova

Alice Brito escreveu, com este título, um romance interessante para os leitores em geral e de contexto especial para alguns. Para estes, são histórias e costumes dum passado ainda bem presente na memória, de um lugar diferente por tantas razões que é difícil decidir por onde começar e até que ponto recuar no tempo.
As mulheres pertencem ao largo da Fonte Nova, como a Fonte Nova pertence ao bairro de Troino, como Troino pertence à cidade de Setúbal, como Setúbal pertence ao conceito de anti-capital por natureza. Porto, feitoria de povos mediterrânicos, entreposto atlântico, mais cidade-estado nas suas raízes históricas do que outra coisa.
Na época descrita no romance, do princípio ao meio do século XX, eram ainda visíveis os genes populacionais, as ruínas arqueológicas e as inscrições, deixados pelos povos do mar, tanto ou mais do que os vestígios do fluxo e refluxo dos impérios.
Para quem não conheça a cidade de Setúbal, o seu carácter revela-se por duas personagens históricas que aí viveram pouco, mas aí se definiram: D. João II e Bocage. D. João II casou nesta cidade, onde mais tarde assassinou o cunhado para acabar com as conspirações com Castela e onde tomou algumas das decisões que o tornaram no rei mais importante da história de Portugal. Bocage, um dos maiores poetas portugueses e certamente dos mais complexos, o mais sarcástico em relação às autoridades civis ou religiosas, e o mais recalcitrante aos costumes e normas sociais.
A ficção deste livro, obviamente de inspiração biográfica, é dialogada com uma consciência crítica, as personagens podem ser inventadas (são mesmo?) mas num contexto de figurantes reais e os acontecimentos podem ser romanceados mas (a maior parte?) são baseados em factos reais. Os lugares descritos, sobretudo o próprio Largo da Fonte Nova e ruas adjacentes, o bairro de Troino, o tempo, a atmosfera, os tipos humanos, todas essas coisas eram vistas de perspectivas diferentes de acordo com o género e os interesses dos habitantes.
A autora, tal como as mulheres que descreve, revela um sentido agudo de consciência social, de como funcionavam os preconceitos contemporâneos e a ubiquidade de coscuvilhice das comadres. Por um lado, a pobreza de muitas famílias dependentes das incertezas da pesca e do trabalho nas fábricas de conservas, assim como o papel da caridade e da incipiente assistência praticadas na época. Por outro lado, as relações de dependência quase feudal entre o povo e a pequena burguesia local, sobretudo a fabriqueira. 
Outros olhos viam outras coisas, ou as mesmas coisas de forma diferente. Viam uma gente de auto-suficiência feroz, de disciplina marítima na obediência aos arrais dos barcos, homens gregários e querelentos em terra, desconfiados de bufos da polícia política de então, a quem deixavam a sobrevivência curta e os corpos do delito no meio do mar. Contavam-se as histórias, mas nunca havia provas. As mulheres pediam perdão na igreja pelos pecados dos homens, que esperavam nas tabernas...
Podia-se viver no bairro e só o conseguir penetrar mais profundamente por eclipses: a visita à rua do Castelo para saber porque um colega tinha faltado ao Liceu (estava com paludismo, sim, ainda havia), a ida ao convento do Viso (após inquérito duma tia-avó na capelista) levar dinheiro e pertences a uma antiga criada que desaparecera subitamente (juntara-se com o leiteiro... aquele que transportava as bilhas de bicicleta), ou as expedições de acompanhamento (mais ou menos forçado) às meninas de S. Vicente que regularmente distribuíam roupas e comida aos mais necessitados.
Esse tempo passou definitivamente, como passaram as pessoas, como passam as épocas, como muda a alma que ocupa temporariamente os lugares e as coisas. Desapareceu o pequeno comércio tradicional, multiplicaram-se os restaurantes, num ou noutro dos quais se continua a comer o melhor peixe e marisco do mundo, tudo isto temperado por uma boa dose da nostalgia ambiente.  O romance acaba de forma um pouco elaborada, reflectiva e definitiva. Tinha que ser, porque a nostalgia tem que ter limites, mesmo num bom livro.
JSR

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