Alice Brito escreveu, com este título, um romance
interessante para os leitores em geral e de contexto especial para alguns. Para
estes, são histórias e costumes dum passado ainda bem presente na memória, de
um lugar diferente por tantas razões que é difícil decidir por onde começar e até
que ponto recuar no tempo.
As mulheres pertencem ao largo da Fonte Nova,
como a Fonte Nova pertence ao bairro de Troino, como Troino pertence à cidade
de Setúbal, como Setúbal pertence ao conceito de anti-capital por natureza.
Porto, feitoria de povos mediterrânicos, entreposto atlântico, mais
cidade-estado nas suas raízes históricas do que outra coisa.
Na época descrita no romance, do princípio ao meio
do século XX, eram ainda visíveis os genes populacionais, as ruínas arqueológicas
e as inscrições, deixados pelos povos do mar, tanto ou mais do que os vestígios
do fluxo e refluxo dos impérios.
Para quem não conheça a cidade de Setúbal, o seu
carácter revela-se por duas personagens históricas que aí viveram pouco, mas aí
se definiram: D. João II e Bocage. D. João II casou nesta cidade, onde mais
tarde assassinou o cunhado para acabar com as conspirações com Castela e onde
tomou algumas das decisões que o tornaram no rei mais importante da história de
Portugal. Bocage, um dos maiores poetas portugueses e certamente dos mais
complexos, o mais sarcástico em relação às autoridades civis ou religiosas, e o
mais recalcitrante aos costumes e normas sociais.
A ficção deste livro, obviamente de inspiração biográfica,
é dialogada com uma consciência crítica, as personagens podem ser inventadas (são
mesmo?) mas num contexto de figurantes reais e os acontecimentos podem ser
romanceados mas (a maior parte?) são baseados em factos reais. Os lugares
descritos, sobretudo o próprio Largo da Fonte Nova e ruas adjacentes, o bairro
de Troino, o tempo, a atmosfera, os tipos humanos, todas essas coisas eram vistas
de perspectivas diferentes de acordo com o género e os interesses dos
habitantes.
A autora, tal como as mulheres que descreve,
revela um sentido agudo de consciência social, de como funcionavam os
preconceitos contemporâneos e a ubiquidade de coscuvilhice das comadres. Por um
lado, a pobreza de muitas famílias dependentes das incertezas da pesca e do
trabalho nas fábricas de conservas, assim como o papel da caridade e da
incipiente assistência praticadas na época. Por outro lado, as relações de
dependência quase feudal entre o povo e a pequena burguesia local, sobretudo a
fabriqueira.
Outros olhos viam outras coisas, ou as mesmas
coisas de forma diferente. Viam uma gente de auto-suficiência feroz, de disciplina
marítima na obediência aos arrais dos barcos, homens gregários e querelentos em
terra, desconfiados de bufos da polícia política de então, a quem deixavam a
sobrevivência curta e os corpos do delito no meio do mar. Contavam-se as histórias,
mas nunca havia provas. As mulheres pediam perdão na igreja pelos pecados dos homens,
que esperavam nas tabernas...
Podia-se viver no bairro e só o conseguir penetrar
mais profundamente por eclipses: a visita à rua do Castelo para saber porque um
colega tinha faltado ao Liceu (estava com paludismo, sim, ainda havia), a ida
ao convento do Viso (após inquérito duma tia-avó na capelista) levar dinheiro e
pertences a uma antiga criada que desaparecera subitamente (juntara-se com o
leiteiro... aquele que transportava as bilhas de bicicleta), ou as expedições
de acompanhamento (mais ou menos forçado) às meninas de S. Vicente que
regularmente distribuíam roupas e comida aos mais necessitados.
Esse tempo passou definitivamente, como passaram
as pessoas, como passam as épocas, como muda a alma que ocupa temporariamente
os lugares e as coisas. Desapareceu o pequeno comércio tradicional,
multiplicaram-se os restaurantes, num ou noutro dos quais se continua a comer o
melhor peixe e marisco do mundo, tudo isto temperado por uma boa dose da
nostalgia ambiente. O romance
acaba de forma um pouco elaborada, reflectiva e definitiva. Tinha que ser, porque
a nostalgia tem que ter limites, mesmo num bom livro.
JSR
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