Em Abril de 1974 começou uma comédia de enganos, a
revindicação classista dos capitães das forças armadas que acabou na tragédia
duma revolução manobrada pelos comunistas, a única força política organizada
contra o regime anterior. Todos estes actores, regime anterior, golpes de
estado militares e comunistas, já então estavam fora do prazo de validade na
evolução política europeia. Uma marca clara de menoridade nacional.
Depois, organizaram-se outros partidos políticos:
um socialista, também de matriz marxista, cuja qualidade maior era não ser o
dinossáurio comunista; outro democrata, que se dizia social, porque os tempos
não estavam para liberais; mais um cristão democrata, contraditoriamente ligado
a uma Igreja de obediência divina; e, não esquecer, uma certa quantidade de
trotskistas, maoistas e outros grupos extremistas. Tudo isto foi decantando à
medida que os partidos e os seus membros atingiam a idade adulta e aprendiam
alguma coisa sobre a realidade. Sobraram algumas crianças grandes que continuam
com as cabeças nas nuvens e a desempenhar o mesmo papel da sarna na epiderme política.
Foram todas estas cabeças aceleradas que
escreveram a primeira Constituição da terceira república e que têm resistido e
limitado as revisões posteriores. Imaginaram um país de fantasia socialista,
feito da projecção de utopias recorrentes, país que não existia então e não existe
ainda. Uma Constituição escrita como um Livro de Horas Canónicas, uma colecção de
orações, de desejos, de encantamentos. Para uma sociedade socialista, livre,
justa e fraterna. Para direitos adquiridos e inalienáveis dos trabalhadores, para
serviços de saúde e educação tendencialmente gratuitos, para reformas
garantidas. Com a esperança de que a repetição de preces e de boas intenções, levasse
ao auto-convencimento da doutrina da fé e ao milagre da realização.
Na altura, raros foram os que se atreveram a
fazer as duas perguntas fundamentais: Quais eram os deveres correspondentes a
esses direitos? Com que receitas iam, o Estado e as empresas, pagar todas essas
novas despesas?
As respostas foram sendo sucessivamente tão
ignorantes (ou hipócritas) como o são ainda hoje. Primeiro pagavam os “ricos”,
depois pagava a “Europa”, e finalmente pagavam os empréstimos. Alguém mais
tarde haveria de pagar, de preferência durante o governo de outro partido.
Pedir emprestado era bom, era investimento, era barato e permitia ganhar
eleições. O futuro estava longe e a Deus pertence.
Mas esse dia futuro acabou por chegar. Obviamente
não há ricos que cheguem; os países europeus economicamente mais desenvolvidos
têm os seus próprios problemas de competição global e não aceitam transferências
para os países desgovernados; e finalmente a bancarrota só é evitada, ou
adiada, com mais empréstimos, mas desta vez estritamente condicionados por
programas de reformas e ajustamentos à economia real do país. Afinal não há
milagres.
A realidade, comezinha e desagradável, é que
chegou a altura de perguntar como podem e quanto querem, os cidadãos pagadores
de impostos, contribuir para que os serviços do estado sejam viáveis? Toda a
gente parece estar contra o aumento de impostos. Muita gente, como mostram as
manifestações, está contra os cortes na despesa que limitem o custo da função
pública, da educação, da saúde, do estado social em geral. A isto chama-se um
impasse.
A salvação não virá só do crescimento económico
possível. A entrada no mercado internacional dos países em desenvolvimento com
mão de obra barata e sem protecções sociais, deslocou indústrias e reduziu o
valor do mesmo tipo de trabalho nos países desenvolvidos. Re-industrializar? Os
génios das lendas não voltam a entrar nas lamparinas. A nova economia do
conhecimento? É preciso investimento, perseverança e tempo. Além disso, as
novas tecnologias precisam de cada vez menos gente e cada vez mais bem
preparada. Mais e melhores serviços, mais auto-suficiência no consumo? Isso ajudaria
ao menos para manter uma balança do comércio externo positiva.
A Constituição Portuguesa está caduca e precisa
de ser revista. Não há Livro de Horas, preces aos deuses ou respeito pela
doutrina da fé, que resistam ao choque com a realidade. A nova Constituição tem
que ser simples, técnica, concisa e garantir um Estado viável. Acabou-se o tempo das
ideologias utópicas, da literatura romântica e das encantações atávicas.
JSR