Friday, September 21, 2012

124 - Panegírico de Santa-Maçaneta-da-Porta, Virgem e Mártir

As maçanetas estão colocadas de um lado e doutro duma porta, separando o dentro e o fora. Uma posição menos exaltada que a dos pontífices (pontifex, fazedor de pontes), os quais sucederam aos xamans como mediadores entre os homens e os espíritos. Uns e outros encontram-se instalados entre a realidade e o imaginário.
Esta Santa Maçaneta viveu nos tempos conturbados das guerras bufónicas (neologismo de bufão, bufões). Dum lado, os que estavam  do lado de dentro da porta do governo de Portugal e que não tinham outro remédio senão tentar resolver os problemas da triste realidade nacional. Do outro lado, os que por estarem de fora, se podiam permitir apregoar umas alegres patetices negando a gravidade da situação. As posições eram reversíveis, os factos não. O tesouro do reino estava empenhado, não havia verba para continuar a sustentar os oligarcas no seu estadão habitual, nem os burgueses nos seus privilégios, nem os servos da gleba nas suas pequenas regalias.
Disse o povo:
“Santa-Maçaneta-da-Porta
não tugia nem mugia.”
Por essa altura houve manifestações pacíficas contra as dificuldades crescentes e o empobrecimento de todos, com a óbvia excepção de alguns oligarcas multi-alavancados. Centenas de milhares de pessoas gritaram o desespero de quem não vê saída para as consequências da crise, o desemprego, a diminuição dos rendimentos, o aumento incessante dos impostos para os que pagam. Saiu à rua o povo que não percebe, nem quer perceber do equilíbrio das contas do orçamento, que acha que chega de sacrifícios para pagar erros de governação e de gestão financeira, de apropriação dos recursos do Estado por grupos de interesses e governantes complacentes. As manifestações e as greves corriam geralmente bem, apesar de haver alturas em que a polícia, oportunamente bem treinada, tinha que aguentar estoicamente mas sem ceder, as provocações duns quantos destrambelhados.
O país projectava assim uma imagem de irritação digna e civilizada, assim como enviava uma mensagem de desmentido àqueles que julgavam o povo adormecido ou resignado. Uma imagem e uma mensagem muito importantes para o exterior. Melhores imagens do que as que vimos recentemente vindas de Inglaterra ou de França, em que grupos organizados de bandidos destruíram os centros de Londres ou Paris. Para não mencionar a Grécia.
Disse o povo:
“Santa-Maçaneta-da-Porta
não fechava nem abria.”
Mas depressa apareceram os oportunistas e os excitados, que aproveitaram o descontentamento popular por todas as formas, as honestas, as desonestas e mesmo as ridículas.
Perguntava a repórter (da RTP Informação, no dia 15 de Setembro, cerca das 17 horas) a um dos manifestantes: “Veio a esta manifestação porque a situação do nosso país nunca esteve tão má como agora, não é verdade?” Responde o manifestante: “É isso mesmo”. Apanhada a pôr palavras no boca dos entrevistados... É este o “serviço público" que temos, sem noção de objectividade e de ética jornalísticas.
Os aproveitadores apressaram-se a saltar na corrente contra a austeridade e na onda do basta de sacrifícios. Os primeiros foram os radicais de esquerda que protestam contra as consequências sem se preocuparem com a solução das causas das dificuldades. Logo seguidos dos que perderam as últimas eleições por terem entregue o reino aos credores, por num sufoco de tesouraria terem aceite um acordo de emagrecimento programado e regularmente controlado. Dizem que estão de acordo com o memorando de entendimento que assinaram, mas não com a forma como é aplicado. Porém, quando perguntados sobre o que propõem como alternativas, não sabem o que dizer ou dizem disparates, porque sabem bem que não há alternativas.
Disse o povo:
“Santa-Maçaneta-da-Porta
não tugia nem mugia.”
Por outro lado, os que lhes sucederam querem continuar a receber os fundos para pagar as despesas de funcionamento do Estado, repetindo que sem o dinheiro da troika não há salários, não há educação, não há saúde, não há nada. Ou cumprimos o acordo ou volta o dilúvio. E assim justificam todos os sacrifícios, mesmo aqueles que, na realidade, poderiam ser minorados com o corte da despesa do lado dos grandes interesses nacionais e internacionais. Embora esses estejam defendidos por contratos leoninos, armadilhados por grandes gabinetes de advogados portugueses prontos a debicar os ossos da economia do seu próprio país.
O pior de tudo é que estes novos governantes estão a ter algum sucesso na aplicação das medidas do acordo, nas negociações com os credores e na redução das despesas do reino. E isso é imperdoável. Nada exaspera tanto os adversários, nada descontrola tanto os falsos amigos, como o sucesso, mesmo um sucesso relativo. Assanharam-se assim as lutas entre bandos partidários e entre as facções dentro de cada bando. Sucedem-se as declarações assassinas dos dois lados da porta, as punhaladas nas costas, a excitação e os exageros mediáticos.
Disse o povo:
“Santa-Maçaneta-da-Porta
não fechava nem abria.”
Não se deve abusar do povo, embora esse tenha sido um passatempo favorito dos poderosos desde o início dos tempos. Porém, quando a sobrevivência está em risco, todos os povos podem encontrar a coragem de sacrificar a casta que se apropriou do poder temporal e do divino. A história está cheia de exemplos, dos Maias à China, passando pela Europa e o Mediterrâneo, até aos nossos dias. Mas ainda não chegámos a esse ponto.
As manifestações podem ter importância democrática, como indicação do que pensa o povo numa dada situação, ou como uma chamada de atenção para os interesses particulares dum certo grupo, mas não podem ter consequências institucionais. Só as eleições gerais ou os plebiscitos, podem determinar a vontade da maioria. Essa vontade pode ser clarividente ou estúpida, mas é a base da democracia que temos. Nas últimas eleições uma larga maioria votou nos partidos que apoiaram o memorando de entendimento com a troika e no partido que assinou o acordo, não é agora uma manifestação que pode mudar esse facto.
Disse o povo:
“Santa-Maçaneta-da-Porta
não tugia nem mugia.”
Basta uma grande manifestação e chovem logo as declarações de que o governo tem que se demitir, que perdeu a credibilidade, que perdeu a legitimidade, que é preciso um governo de salvação nacional e outras inanidades do mesmo tipo. Diz quem? Dizem políticos reformados, ou caquécticos, ou azedos, ou pendurados, ou ansiosos. Dizem comentadores papagueando ideologias e cartilhas. Dizem crónicas e artigos na imprensa, explorando a emoção do momento. Mas que são apenas isso, desejos fantasistas sem contacto com a realidade. Esta maioria, goste-se ou não, foi eleita para governar durante quatro-anos-quatro.
Todavia, há também políticos, comentadores, cronistas e jornalistas, que tentam ser justos e isentos. Que compreendem que um governo estável e um mínimo de consenso social é tudo o que nos separa do desastre, que a queda do governo não seria só injustificada, seria um erro e uma estupidez. Normalmente são os mais sabedores, experientes e bem informados, vindos de todos os quadrantes sociais e políticos. Muitos são, ou foram, professores universitários ou gestores de grandes instituições ou empresas, habituados a investigar e verificar os factos antes de se pronunciarem, em vez de despejar tudo o que lhes passa pela cabeça.
Disse o povo:
“Santa-Maçaneta-da-Porta
não fechava nem abria.”
Porém, quando finalmente Santa Maçaneta se abriu, revelou que os dois lados da porta eram iguais, como reflexos num espelho. E foi assim que massacraram Santa Maçaneta, que foi mártir às mãos dos extremistas políticos e da credulidade do povo, dos que tomam os seus desejos pela realidade e dos que em nome da realidade esquecem a necessidade de manter a esperança. Já a condição de virgem é discutível, com tantas chaves e tantas marretadas dos dois lados da porta. Mas a sua canonização como santa é certamente mais merecida que a de outros e outras que ouviam vozes, viam coisas, escreviam parvoíces e falavam como ventríloquos projectando a voz dos donos. Amen.
JSR

2 comments:

  1. Gostei particularmente desta passagem: "Basta uma grande manifestação e chovem logo as declarações de que o governo tem que se demitir, que perdeu a credibilidade, que perdeu a legitimidade, que é preciso um governo de salvação nacional e outras inanidades do mesmo tipo. Diz quem? Dizem políticos reformados, ou caquécticos, ou azedos, ou pendurados, ou ansiosos. Dizem comentadores papagueando ideologias e cartilhas. Dizem crónicas e artigos na imprensa, explorando a emoção do momento. Mas que são apenas isso, desejos fantasistas sem contacto com a realidade. Esta maioria, goste-se ou não, foi eleita para governar durante quatro-anos-quatro."
    Reflecte exactamente o que se passa hoje em Portugal... tudo a tentar surfar a onda da contestação, poucos preocupados com o devir dessa contestação, muitos desmiolados que não se lembram do que fizeram ontem, muitos preocupados em defender os interesses pessoais ou de grupo, poucos empenhados em mudar o status quo do Estado, poucos que acreditam na democracia e no cumprimento dos mandatos democráticos!

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  2. É isso mesmo, é preocupante e perigoso.

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