May Day |
Neste primeiro de Maio, com
tantas tradições ancestrais de celebração dos ritmos da natureza e tantos significados
espúrios mais recentes, leio num jornal que a China proibiu a exibição das
cenas de nu do filme “Titanic”. Têm razão, a Kate Winslet integral não é oficialmente
para os olhos dos proletários, que não a merecem.
Os proletários devem
manifestar neste dia a sua satisfação por viverem num “paraíso dos
trabalhadores” com marchas militares. Os que ainda são explorados pelo capital
devem desfilar com bandeiras exprimindo o desejo de emigrarem para esses
paraísos. Boa viagem. Mas lembrem-se que à chegada não poderão ver um filme com
uma mulher nua. Entre muitas outras coisas proibidas. A não ser que sejam membros
do partido ou os seus agentes empresariais, porque esses têm meios para comprar
os CDs clandestinos e tudo o resto. Já que Mao tenha invocado a medicina
tradicional para nos seus últimos anos se fazer aquecer por várias jovenzinhas simultaneamente
na sua cama, é doutrinariamente perfeitamente ortodoxo...
Mas as ditaduras comunistas
não são as únicas a limitar as liberdades individuais e colectivas duma forma
esquizofrénica. Em todos os regimes autoritários as definições de moral e os
atropelos a essas definições são sempre um catálogo de hipocrisias.
No Irão, os guardas da
revolução dos ayatollahs assediam na rua as mulheres que não se tapam
suficientemente, mas a venda de cassetes pornográficas é o grande negócio dos
bazares. Situações similares acontecem noutros países islâmicos com burcas e
niqabs e restrições à educação, ao trabalho e à autonomia.
Nos estados dominados pelas
religiões “reveladas” de origem tribal, o patético das tradições obtusas tem-se
mostrado pouco permeável ao tempo e à razão. Basta uma consulta à Wikipedia
sobre o Ayatollah Khomeini, ou para ler qual o tipo de assuntos em que se
especializam os “doutores” da sharia, para ter uma ideia do fosso que separa as
democracias seculares desse outro mundo em que ainda vivem esses (e outros) selvagens.
A recordar o que disse Saramago
sobre os “manuais de maus costumes”... e a esquecer que nunca foi viver para
nenhum dos paraísos proletários tão caros aos seus correligionários. Porque
sabia bem a diferença entre a “pose” para bugio ver e a realidade.
As definições de moral mudam
com os tempos e com as civilizações. Mas a aplicação das suas leis e eventuais
sanções variam sempre de acordo com as classes sociais. Não são só os Maos e as
suas idiossincrasias. Porque são sempre os mais fracos que estão na mira dos
vigilantes da obediência às práticas dominantes: as mulheres, os deslocados, as
minorias religiosas, étnicas ou sexuais, os dependentes de vícios proibidos, os
pensadores livres.
As ditaduras dos costumes são
sempre esquizofrénicas, seja qual for a sua desculpa doutrinária. As leis iníquas
e as repressões são ineficazes porque só servem para dar um estatuto social aos
fanáticos ignorantes que as aplicam.
A ignorância pode ser
temporária, mas a estupidez é para sempre.
JSR
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