Sunday, January 22, 2012

87 - A Crise Chegou ao Paredão de Cascais (Conversas Surrealistas)

"As Banhistas" de Joana Rosa Bragança
Nestes dias que o calendário pretende serem de Inverno, mas onde a temperatura é de Primavera e o Sol é de Verão, a crise chegou insidiosamente ao paredão de Cascais. Realmente nada parece o que é.
São quase duas da tarde e conseguimos mesa num restaurante, estranho, costuma haver fila, mas nas mesas apenas uma família inglesa está a almoçar, nas outras predominam águas e cafés.
Ao sentarmo-nos, devemos ter atravessado uma descontinuidade de espaço/tempo, porque aterramos inadvertidamente num daqueles programas televisivos para sopeiras do tempo da outra senhora.
Extractos do diálogo duma mesa para outra, em diagonal, duas balzaquianas magras com o mesmo cabelo longo, pintado em farripas, ripado:
- Olá, é a Zé-Zé, não é?
- Sou...
- Ah, mas está tão bem! Bem mesmo! Não a via desde o “take” em Oeiras. Nem parece que... Sou a irmã do Chico.
- Tenho andado doente.
- De quê?!
- Da cabeça...
- Isso andamos todas! Todas! Mas... é por causa do Pedro?
- Sempre foi um pai ausente, mas agora que eu tenho um amigo está sempre a telefonar às filhas. 
Chega uma miúda vinda da praia (cópia conforme da mãe, cerca de 12 anos, mini-saia e botas de montanha), interrompendo o diálogo.
- Mãe, estou cheia de fome.
- A menina quer comer aqui ou esperar pelo Pedro? Não sei onde ele quer ir com vocês.
- O pai está com a Nhô-Nhô.
- Falei com ele e disse que vinha mais tarde.
A filha senta-se e a Zé-Zé faz telefonema após telefonema, freneticamente, intercalados apenas com beijos e marradinhas no companheiro, calado, ausente.
Subitamente:
- Mafalda, telefone ao Pedro.
- Quero ir almoçar com a Nhô-Nhô, estou cheia de fome. E a Pilar também.
A Pilar chega da praia, quatro ou cinco anos, vestidinho de Alice no País da Maravilhas, meias altas e sapatos de verniz. Quer ficar de costas para o Sol e arrasta uma cadeira à volta da mesa, encalhando com tudo o que não se afasta tão “presto” como os cães estacionados por ali.
- Quero um hambúrguer.
- Mafalda, tome lá o telefone.
- Não.
Pouco tempo depois chega um tipo baixote e anafado com uma rapariga pós adolescente, beija as miúdas, beija a balzaquiana da outra mesa, diz “Olá” à Zé-Zé, faz um aceno ao tipo sentado na cadeira do lado como uma “potted plant” que inesperadamente sussurra entre os dentes “senhor doutor...”, e voltando-se para as miúdas:
- Já almoçaram?
- A Pilar quer um hambúrguer.
- A Mafalda também.
A Zé-Zé para o empregado:
- Oh, faz favor!
- Queremos duas saladas disto e daquilo, dois hamburguers, um deles com um ovo a cavalo, mais uma dose de batatas fritas e coca-colas e uma super-bock e...
No meio da conversa generalizada de mesa a mesa o tipo anafado acabou por se sentar com a outra balzaquiana, que imediatamente lhe começou a ajeitar o cabelo e a camisa, a encostar-lhe a cabeça ao ombro e a fazer outros tagatés ternurentos.
À mesa do lado chegaram os almoços, todos comeram, as miúdas voltaram à praia, a “potted plant” desapareceu sem que ninguém se tivesse dado conta, a Zé-Zé partiu a caminho da casa de banho. Ficaram as peças de roupa nas cadeiras e a loiça na mesa.
Finalmente, da outra mesa em diagonal o “senhor doutor, pai ausente” pediu a conta, olhou para o papel, olhou à volta para a mesa do lado vazia, pegou na máquina que o empregado lhe estendia e marcou o código.
JSR

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