Return 1 - Zahi Khamis |
Ditoso Camões, que amava a Pátria à qual voltava, apesar desta lhe ser madrasta. O lugar onde se nasce completa a programação dos genes que nos fazem, depois vem a educação e finalmente, se tudo correr pelo melhor, o sentido da responsabilidade individual. Mal vai o país onde os cidadãos não entrem na idade adulta sabendo que têm que o fazer pelo seu pé e viverem a sua vida sem depender das benesses de ninguém.
Estes foram alguns dos pensamentos que preencheram uma noite sem sono durante o último voo de travessia do Atlântico, lendo relatórios sobre as crises internacional e nacional, assim como notícias sobre diversas manifestações e movimentos de “indignados” aqui e acolá. Indignados porque já ninguém aceita levá-los ao colo como crianças dependentes, nem as famílias, nem as empresas, nem os Estados.
Depois de ausências de meses, anos ou décadas, os regressos a esta “ditosa pátria minha amada” são sempre experiências traumáticas, de alguma forma. Voltar primeiro para as reuniões familiares alargadas do Natal ou para umas semanas de férias, representou de cada vez a surpresa e a descoberta duma realidade desconhecida. Voltar depois por uns anos, constituiu uma sucessão de choques contra as paredes de vidro do conformismo com a tradição, da resignação com as superstições, da passividade com as estrituras impostas por um regime autoritário.
A idade adulta trouxe finalmente as asas para voltar a voar para fora e bem acima da cerca. Partir por muito tempo, mas sem nunca perder o contacto. Quem não está contente com a situação em que se encontra, ou muda a situação ou muda-se a si próprio para onde se encontre melhor. Tudo o que pára, estagna e morre. Ao longo de tantos séculos de história, Portugal viu partir os mais descontentes e os mais empreendedores, à custa dos quais viveu os seus raros períodos de prosperidade. Construíram-se impérios comerciais e vieram escravos, especiarias e ouro. Os que ficaram souberam sobretudo esbanjar tudo o que receberam em monumentos à sua vaidade, luxos de importação, conventos onde sobreviveu alguma sabedoria e muita inutilidade, sem nunca serem capazes de fazer frutificar o capital numa economia sustentável.
Voltar desta vez, talvez a última, tem sido um reencontro progressivo e uma adaptação difícil, onde ainda continua a doer a estranheza de tudo. O principal choque, ao voltar a este pequeno país europeu, é uma confusão mental e física maior do que é aparente em visitas curtas. A confusão mental manifesta-se pela frequente irracionalidade na definição, na avaliação e na resposta às situações, na falta de rigor das alternativas propostas, na má execução dos projectos, na incapacidade de aprender com os erros passados para evitar repeti-los. A confusão física manifesta-se naquilo que aparece como uma casa desarrumada. Leio num jornal que um gestor conhecido e boçal partiu o vidro duma janela do carro ao tentar atirar uma garrafa para a estrada, enquanto conduzia e falava ao telefone... Quantos atentados às leis e quanta falta de educação e civismo se concentram neste gesto.
Por outro lado, este país é um dos raros lugares relativamente civilizados do mundo, onde se pode viver em paz, liberdade e com alguma qualidade de vida, mesmo limitada. Uma democracia razoavelmente funcional, assente numa burguesia minoritária, mas inteligente e instruída, alguns mesmo brilhantes, outros palradores e quezilentos, enquanto que a maioria popular está ainda em vias de desenvolvimento escolar, social e de cidadania. Uma economia liberal, embora a maioria dos empresários continuem dependentes do Estado e dos favores políticos, haja relações incestuosas entre as funções públicas e privadas, a maioria dos empresários e trabalhadores sejam pouco qualificados, pouco produtivos e em servidão contratual com bancos e programas de subsídios. Um estado providência tentacular, que é a salvação da população mais carenciada, mas com uma burocracia excedentária, com hábitos de favores e corrupção, além de lenta e pouco eficaz.
Um país de pequenos contrastes, que vistos localmente parecem enganadoramente grandes. A crise financeira internacional, a falta de clarividência dos principais responsáveis Europeus e nacionais, a crise da dívida de vários países da zona Euro e particularmente deste, estão a afectar profundamente a cultura do país. A Terceira República começada em Abril de 1974 deu predominância política ao progresso social e de infra-estrutura, sobre a sustentabilidade económica. O consequente desmoronar sob o peso das dívidas, traz agora um recuo significativo de nível de vida para toda a população, que terá que alinhar as suas necessidades bem reais com a reduzida capacidade económica de que o país é capaz.
O principal prazer de voltar a Portugal, é sempre o reencontro com a cultura no seu sentido lato, aquilo que a tradição chama “a alma nacional”. Em Lisboa, na província e mesmo nos que estão no estrangeiro, há uma transversalidade dessa cultura abrangente que transporta consigo cada Português, que é quase sempre reconfortante, mesmo que por vezes possa irritar profundamente. Fado, Fátima e futebol, já mantinham as massas populares numa apatia suficientemente imbecilizante, agora junta-se o triunfo da frivolidade nos media em geral e na televisão em particular, onde concursos, telenovelas, astrologias e outro lixo, são debitados até ao estado de coma intelectual.
A cultura é decerto ainda maioritariamente conservadora, mas com excepções importantes na literatura, nas artes e nas ciências. Notáveis excepções de mérito individual. A dependência dos subsídios do estado impede a clarificação da qualidade pela sobrevivência dos mais aptos. Como os subsídios dependem do gosto (ou falta dele) de quem toma as decisões, de compadrios e de politiquices, a cultura não vai a lado nenhum que valha a pena por esse caminho. Os artistas dependem historicamente de patronos oficiais ou privados que asseguram a sua sobrevivência, raros são os que dependem apenas do público que aprecia, compra ou assiste à representação das suas obras. A dependência traz sempre compromissos, mas a dependência sem exigência é desmotivadora e aviltante. Considerar a cultura como fazendo parte dos preconceitos ideológicos de redistribuição social, provoca inevitavelmente o abastardamento da qualidade, como se prova uma e outra vez.
Com os novos meios de comunicação dá-se um acesso cada vez maior à informação em qualquer lugar e de onde quer que nos encontremos. A porta da internet permite saber instantaneamente o que se passa do outro lado do mundo, aceder, ver, participar ou comentar. Os acontecimentos são em directo. Vê-se muito melhor um jogo de futebol ou uma Ópera no conforto de casa do que no estádio ou no auditório. Falta a interacção com os outros, os que estão na assistência ou os que estão no terreno ou no palco, mas o calor humano e as multidões tornam-se cada vez mais e para um número cada vez maior de pessoas, inconvenientes e desnecessários.
De tribos de homo sapiens sapiens, a parte da humanidade mais inteligente e cientificamente avançada transforma-se progressivamente em associações de interesses desencarnados num mundo cada vez mais robotizado e mais virtual. Contactamos com a terra, o mar e os animais donde extraímos os alimentos através de máquinas. Deslocamo-nos através doutras máquinas. A saúde depende de sistemas cada vez mais automáticos. Os computadores servem de intermediários para com o governo, a administração, as empresas e os amigos. Até a guerra necessária para nos defendermos dos bárbaros que atacam a nossa civilização racional e frágil, se torna progressivamente dependente do controle das comunicações, da vigilância por satélite, de robots e de drones comandados à distância. Combatemos os bandidos das nove às cinco, diante dum écran de onde se comanda o bombardeamento dos terroristas e o ataque aos extremistas.
Voltar a Portugal e continuar ligado ao mundo exterior já não é uma singularidade ou um desafio, é um estado comum para muitos, mas não para todos. Esta divisão acontece em cada povoação, cada cidade, cada país, cada continente. Pode ser maior a distância de interesses e conhecimentos entre dois vizinhos da mesma rua do que entra dois amigos no Facebook situados nos antípodas um do outro. É neste mundo desconstruído que vivemos. Esbate-se a solidariedade social, ignoram-se os interesses comuns, desaparece a democracia onde tenha conseguido florescer, aumenta a insegurança. Cresce o tribalismo nacional, a criminalidade transnacional, as máfias em simbiose com regimes autoritários, a mediocridade política nacional e internacional.
“Não me tapes o Sol”, conta a lenda que disse Diógenes a Alexandre. Não nos tapem o Sol com uma peneira, dizemos nós aos aprendizes de feiticeiro que não ousam atacar os problemas de frente, as sucessivas crises políticas, económicas e sociais dos lugares onde vivemos. Na realidade, tanto o fracasso como o sucesso resultam da acção e podem sempre ser revertidos. A verdadeira derrota é a irrelevância, o navio parado no meio do oceano sem velas e sem motor. O acumular de incompetências e desvarios a que ninguém presta a devida atenção durante muito tempo e que de repente se pode revelar um buraco negro onde tudo desaparece.
Aqui estamos neste fim do ano de 2011, à beira do abismo financeiro, económico, social e político. Em Portugal, como em outros países, ouvem-se as vozes irresponsáveis vindas da Europa e da América, insistindo em que é preciso e urgente dar um passo em frente. É preciso resistir, mas para resistir é preciso saber como, o que obviamente nem todos sabem.
Este é o último post deste ano, com desejos sinceros que 2012 seja um ano melhor.
JSR