Calçada Portuguesa |
Dia de greve geral
Longe de ser apenas uma perda de tempo e de dinheiro (o que também é), esta greve é útil internamente e necessária para uso externo. Internamente, permite descarregar as tensões acumuladas por medidas duras de redução do nível de vida da população. Externamente, é bom que os parceiros europeus recebam a mensagem de que os portugueses, apesar da consciência cívica que muitos possam ter, atingiram os limites da paciência. Sem abrandar as reformas indispensáveis ao futuro do país, são necessárias medidas europeias para garantir a credibilidade do euro e a retoma do crescimento económico dos países mais endividados, particularmente através duma maior integração política e da emissão de obrigações comuns.
Mentalidade de súbditos
Em tempos de crise, desde sempre os povos se voltam para quem julgam ter os poderes necessários para os ajudar, sejam os deuses em quem acreditam ou as autoridades temporais que se conduzem como seus intérpretes. Milénios de submissão a senhores temporais e religiosos impôs nos indivíduos uma mentalidade de súbditos: desde que eu obedeça ao senhor, o senhor protege-me; mesmo que eu esteja numa situação desesperada, o Senhor fará um milagre. “Eles” sabem e podem tudo, persiste em muitas mentalidades mesmo após as revoluções políticas e científicas do Iluminismo ou Era da Razão. Continuam a confiar a forças exteriores o que deve ser o domínio do livre arbítrio e da responsabilidade individual. Esta confusão leva a que os cidadãos mal ensinados a pensar, não façam a distinção entre as crenças supersticiosas em entidades todo-poderosas e os governos democráticos cujos poderes são limitados pelo mandato dos eleitores e pela realidade nacional e supranacional.
Consciência social
Mas há alguém que não pretenda, por convicção ética ou fingimento estridente, estar a favor das boas causas? É fácil descrever tudo o que vai mal, propor tudo o que o povo quer ouvir, é assim que prosperam os políticos populistas... As diferenças começam a aparecer quando é preciso passar das declarações piedosas à acção sustentada: nas urgências sociais, na equidade na distribuição dos recursos, no desenvolvimento económico, na representatividade política. As diferenças tornam-se fundamentais quando a sobrevivência duma comunidade depende da capacidade de distinguir entre as pregações demagógicas baseadas na fé cega dos dogmas e as análises racionais sobre a eficácia das medidas, sejam elas políticas, económicas ou sociais.
Manifestos e Encíclicas
“Vous n’avez pas le monopole du coeur”, respondeu Giscard a Mitterrand na campanha presidencial francesa de 1974. Afagar “as massas” no sentido do pelo é uma prática corrente e que atrai sempre a simpatia dos pobres de espírito. O tema socialista que deu origem àquela réplica “C'est une affaire de cœur et non pas seulement d'intelligence”, tem sido glosado em Portugal desde então e em todos os tons, um dos quais o célebre “Há mais vida para além do Orçamento” de Sampaio em 2003, que inspirou os anos de desgoverno e irresponsabilidade que se seguiram, ou o manifesto de Soares agora. Citando o manifesto: “Os obscuros jogos do capital podem fazer desaparecer a própria democracia, como reconheceu a Igreja.” Strange bedfellows... Pois, por muitas qualidades que se queira atribuir à Igreja, a democracia não está, nunca esteve, entre elas. “O recente recurso a governos tecnocratas na Grécia e na Itália exemplifica os perigos que alguns regimes democráticos podem correr na actual emergência.” Certo, correm perigo os regimes incompetentes e é bom que esses desapareçam, mas felizmente democracia e incompetência não são sinónimos.
Era só o que faltava
Até agora, os partidos e movimentos “de esquerda” juntavam-se regularmente às diversas “igrejas” (no sentido próprio e no figurado), para a organização de manifestações em defesa de causas sociais, dos trabalhadores, dos pobres e dos oprimidos. Neste momento, os diáconos das capelas socialistas, burguesas e seculares, invocam a bênção da Igreja para se juntar às outras esquerdas, aos sindicatos e descontentes de todos os quadrantes, no facilitismo da contestação contra a “grande conspiração” dos mercados de capitais, contra os Bancos onde o dinheiro devia estar e não está, contra as organizações que avançam créditos mas só em troca de medidas de austeridade. Uma contestação geral contra os “deuses desconhecidos".
Marchas e Procissões
Acima de tudo, uma greve é uma tentativa de intimidação contra a autoridade, contra o poder instituído. Há muitos tipos de marchas, manifestações e procissões. Cada região do mundo e cada zona cultural apresenta as suas características. Em comum têm uma súplica misturada de ameaça aos deuses e aos seus pontífices, os que fazem a ponte com o comum dos mortais, para que ouçam as suas reivindicações. Quando essa ponte de confiança se quebra, a história mostra que o povo acaba por se revoltar e destruir uns e outros.
Cada país tem as elites que merece e as greves de que é capaz.
Cada país tem as elites que merece e as greves de que é capaz.
JSR
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