Thursday, November 24, 2011

75 - Clamando Contra os Deuses Desconhecidos

Calçada Portuguesa

Dia de greve geral
Longe de ser apenas uma perda de tempo e de dinheiro (o que também é), esta greve é útil internamente e necessária para uso externo. Internamente, permite descarregar as tensões acumuladas por medidas duras de redução do nível de vida da população. Externamente, é bom que os parceiros europeus recebam a mensagem de que os portugueses, apesar da consciência cívica que muitos possam ter, atingiram os limites da paciência. Sem abrandar as reformas indispensáveis ao futuro do país, são necessárias medidas europeias para garantir a credibilidade do euro e a retoma do crescimento económico dos países mais endividados, particularmente através duma maior integração política e da emissão de obrigações comuns.
Mentalidade de súbditos
Em tempos de crise, desde sempre os povos se voltam para quem julgam ter os poderes necessários para os ajudar, sejam os deuses em quem acreditam ou as autoridades temporais que se conduzem como seus intérpretes. Milénios de submissão a senhores temporais e religiosos impôs  nos indivíduos uma mentalidade de súbditos: desde que eu obedeça ao senhor, o senhor protege-me; mesmo que eu esteja numa situação desesperada, o Senhor fará um milagre. “Eles” sabem e podem tudo, persiste em muitas mentalidades mesmo após as revoluções políticas e científicas do Iluminismo ou Era da Razão. Continuam a confiar a forças exteriores o que deve ser o domínio do livre arbítrio e da responsabilidade individual. Esta confusão leva a que os cidadãos mal ensinados a pensar, não façam a distinção entre as crenças supersticiosas em entidades todo-poderosas e os governos democráticos cujos poderes são limitados pelo mandato dos eleitores e pela realidade nacional e supranacional.
Consciência social
Mas há alguém que não pretenda, por convicção ética ou fingimento estridente, estar a favor das boas causas? É fácil descrever tudo o que vai mal, propor tudo o que o povo quer ouvir, é assim que prosperam os políticos populistas... As diferenças começam a aparecer quando é preciso passar das declarações piedosas à acção sustentada: nas urgências sociais, na equidade na distribuição dos recursos, no desenvolvimento económico, na representatividade política. As diferenças tornam-se fundamentais quando a sobrevivência duma comunidade depende da capacidade de distinguir entre as pregações demagógicas baseadas na fé cega dos dogmas e as análises racionais sobre a eficácia das medidas, sejam elas políticas, económicas ou sociais.
Manifestos e Encíclicas
Vous n’avez pas le monopole du coeur”, respondeu Giscard a Mitterrand na campanha presidencial francesa de 1974. Afagar “as massas” no sentido do pelo é uma prática corrente e que atrai sempre a simpatia dos pobres de espírito. O tema socialista que deu origem àquela réplica “C'est une affaire de cœur et non pas seulement d'intelligence”, tem sido glosado em Portugal desde então e em todos os tons, um dos quais o célebre “Há mais vida para além do Orçamento” de Sampaio em 2003, que inspirou os anos de desgoverno e irresponsabilidade que se seguiram, ou o manifesto de Soares agora. Citando o manifesto: “Os obscuros jogos do capital podem fazer desaparecer a própria democracia, como reconheceu a Igreja.” Strange bedfellows... Pois, por muitas qualidades que se queira atribuir à Igreja, a democracia não está, nunca esteve, entre elas. “O recente recurso a governos tecnocratas na Grécia e na Itália exemplifica os perigos que alguns regimes democráticos podem correr na actual emergência.” Certo, correm perigo os regimes incompetentes e é bom que esses desapareçam, mas felizmente democracia e incompetência não são sinónimos.
Era só o que faltava
Até agora, os partidos e movimentos “de esquerda”  juntavam-se regularmente às diversas “igrejas” (no sentido próprio e no figurado), para a organização de manifestações em defesa de causas sociais, dos trabalhadores, dos pobres e dos oprimidos. Neste momento, os diáconos das capelas socialistas, burguesas e seculares, invocam a bênção da Igreja para se juntar às outras esquerdas, aos sindicatos e descontentes de todos os quadrantes, no facilitismo da contestação contra a “grande conspiração” dos mercados de capitais, contra os Bancos onde o dinheiro devia estar e não está, contra as organizações que avançam créditos mas só em troca de medidas de austeridade. Uma contestação geral contra os “deuses desconhecidos".
Marchas e Procissões
Acima de tudo, uma greve é uma tentativa de intimidação contra a autoridade, contra o poder instituído. Há muitos tipos de marchas, manifestações e procissões. Cada região do mundo e cada zona cultural apresenta as suas características. Em comum têm uma súplica misturada de ameaça  aos deuses e aos seus pontífices, os que fazem a ponte com o comum dos mortais, para que ouçam as suas reivindicações. Quando essa ponte de confiança se quebra, a história mostra que o povo acaba por se revoltar e destruir uns e outros.
         Cada país tem as elites que merece e as greves de que é capaz.
JSR 

Saturday, November 19, 2011

74 - TSF - Comentários sobre o "Filme da Semana"

TSF - Filme da Semana

Publicado a 18 NOV 11 às 23:29

Na Última Hora, lançamos um olhar de revista à semana que termina. A TSF fez a recolha das marcas que os dias foram deixando.
  
O professor José Soromenho Ramos, conselheiro da Universidade das Nações Unidas, foi o convidado para analisar o Filme da Semana.


Clique para ouvir:

Saturday, November 12, 2011

73 - A Encruzilhada - Os Impostores (8)

Crossroads - Jeff Owen
8 - A Encruzilhada...

Para Portugal, chegou o tempo das grandes decisões. No xadrez geopolítico desta crise, é agora que se vai ver se o governo português sabe jogar com os mestres ou se estamos a ser governados apenas por amadores competentes mas sem experiência nem audácia, condenados a um futuro medíocre e arrastando com eles o país que neles votou.
O presente executivo começou a implementar as reformas necessárias para inverter muitos anos de desgoverno. Os objectivos são claros: que o Estado não gaste mais do que o que obtém em impostos, que as importações não excedam as exportações, que o recurso ao crédito não ultrapasse os valores equivalentes de poupança e que o nível de vida da população não seja superior à produtividade nacional. Por outras palavras, submeter o país a uma gestão de dona de casa prudente, para acabar com as manias de grandeza dos arrivistas que dominaram a vida política e económica desde o 25 de Abril.
A terceira República acabou, avisem os iluminados populistas que fingem que ainda não se aperceberam. A quarta República já chegou com as trombetas e fanfarras destes últimos Orçamentos, mostrando que vai ser muito atavicamente “pobre mas honesta”. Pobre porque não tem escolha. Honesta, honesta, é ainda só um desejo de que o parlamento e a justiça tenham a coragem de respectivamente legislar e de aplicar atempadamente as leis, aos gangs que prosperam a parasitar o estado. Como diziam os optimistas do regime anterior: habituem-se.
Alem disso, o país terá que encontrar uma solução para esta situação de “servidão contratual” em que se encontra. O Estado está na dependência dos credores representados pela troika, o sistema bancário depende dos investidores  e do Banco Central Europeu, assim como muitas empresas e cidadãos dependem dos seus Bancos. Todos estes estratos devem mais do que podem pagar.
Se a economia não crescer, a matemática mostra que será impossível a cada um destes grupos pagar as suas dívidas. Se a economia crescer pouco, o pagamento dos juros da dívida deixará o Estado e os outros sem rendimentos para investir no desenvolvimento. Só se a economia crescer mais do que a média europeia, poderão eventualmente pagar também o capital das dívidas, mas só em parte e sobre um longo prazo. Porque para lá dum certo limite, ao tentar pagar todas as dívidas assim como os juros acumulados o país entra num impossível “catch-22”, um beco sem saída.    
As últimas evoluções da crise das dívidas, atingindo já todo o crescente Sul da Europa, está a levar a uma reavaliação das medidas financeiras tomadas até agora. Essas medidas foram inspiradas pela decisão política, motivada por considerações eleitorais, de castigar os países despesistas pelos seus excessos e de os obrigar a implementar as reformas necessárias para que a situação de insolvência, assim esperam, não se repita no futuro. Os programas de ajuda têm sido aplicados caso a caso, a sua manutenção é condicional aos progressos obtidos e o processo sujeito a supervisão externa. Essa fase está a acabar.
Cada dia que passa torna mais clara a interdependência de todos dentro da zona Euro, mais inevitável a partilha dos custos e das soluções numa maior integração económica, financeira e fiscal, assim como a extensão das consequências dessa integração a toda a União.
Vamos ver até que ponto o governo vai saber aproveitar as vagas desta mudança de maré, como oportunidade para negociar a percentagem da dívida que será possível pagar, obter para o resto uns juros proporcionais ao crescimento e um prazo de pagamento suficientemente longo para não descapitalizar a economia. É preciso que todos, países e cidadãos, paguem o preço para sair da crise, um preço que seja proporcional aos seus interesses e às suas capacidades.
Os ventos sopram desfavoráveis aos impostores.
JSR

Friday, November 11, 2011

72 - Carpe Diem - Os Impostores (7)

Carpe Diem - Gabriele Leozzi

 7 - Carpe Diem...

Da forma como na Europa se tem interpretado a citação “carpe diem quam minimum credula postero” (aproveita o dia, pondo tão pouca fé quanto possível no futuro), tirada das Odes de Horácio, está contido o destino da União, um grupo de países com muitas coisas em comum e muitas outras que os separam.  
Alguns países usaram-na durante muito tempo no sentido de “aproveitar o dia” para o prazer imediato de viver a crédito, sem preocupações com o futuro e estão agora em diversas fases de pagar, ou começar a pagar, a sua leviandade.
Outros, com diferentes tradições culturais, têm-na usado como incentivo para evitar perder tempo com futilidades, “aproveitar a oportunidade de cada dia” para ir construindo o futuro, porque a vida é incerta e não se deve confiar nos deuses ou esperar pelo dia de amanhã.
Esta última crise revelou as fragilidades comuns aos chamados países periféricos: as cumplicidades entre as classes políticas e as oligarquias económicas, os sistemas legais tendenciosos e os serviços de justiça disfuncionais, as empresas em simbiose parasitária com os organismos do Estado, os baixos níveis de competências e de produtividade, as consequentes falta de competitividade e estagnação do crescimento económico, o financiamento do desenvolvimento e do estado social com recurso a empréstimos externos que por excessivos nunca será possível pagar totalmente.
As reformas estruturais (para tentar acabar com as situações mais escandalosas de abuso, desordem e desperdício) e as políticas de austeridade (para baixar o nível de vida ao que é sustentável), são necessárias mas insuficientes para gerar crescimento. Sem crescimento não se pagam as dívidas. Um circulo vicioso que é preciso quebrar.
Por outro lado, os chamados países virtuosos têm aproveitado a liberalização do mercado único para obterem balanças comerciais tão excedentárias quanto possível, à custa da prodigalidade dos países a quem vendem os seus produtos e a quem concedem empréstimos, directa ou indirectamente.
Quando o desequilíbrio se torna insustentável estabelecem-se Fundos europeus de estabilidade, o último dos quais negociado com a esperança ingénua de que os países emergentes nele invistam, como se confessar falta de auto-confiança favorecesse a credibilidade externa. Humilhação inútil, pois até a China, país ainda soi-disant comunista, acusa a Europa de favorecer a indolência com os seus sistemas de protecção social e indica que o investimento dos seus 400 bilhões de fundo soberano será baseado unicamente na rentabilidade, uma decisão puramente capitalista.
 Mas o que fazem as instituições da União Europeia, saídas de todos os tratados e acordos? O que fazem os responsáveis da Zona Euro? Em vez de aproveitarem esta crise para aprofundarem a União, os dirigentes europeus estão a deixar desperdiçar a ocasião, não tanto por culpa própria mas por interferência oportunista dos chefes políticos dos países mais influentes.
Os políticos estão reféns de interesses transitórios e de modelos económicos caducos, incapazes de se auto-regularem mas capazes de protelarem as tentativas de impor uma regulação comum efectiva. Estão também manietados por opiniões públicas confusas que se vêm obrigados a seguir quando se aproximam eleições, porque têm falta de estatura e capacidade para as liderar.
Entretanto a Europa desindustrializou-se e o desemprego cresce, pois nem todos sabem fazer outra coisa além do trabalho nas fábricas. As actividades pós-industriais globalizam-se mais rapidamente do que previsto, deixando aos europeus um quinhão menor do que o investimento em educação lhes permitia esperar.
A Europa já funciona a várias velocidades. Acabou o escapismo de falsos problemas de influência geoestratégica. Acabaram os alargamentos da União Europeia por razões políticas. Acabou o sonho para uns e o pesadelo para outros, dum possível  alargamento à Turquia, pois observando os problemas que causam 12 milhões de gregos, poucos ousam imaginar o que aconteceria com cerca de 80 milhões de turcos.
Neste período crucial, os dirigentes políticos na gravitação do Directório Franco-Alemão, onde o “Franco” encolhe todos os dias, têm partilhado da interpretação rasteira de “carpe diem”, resolvendo a posteriori os problemas de cada dia.
                                                               (continua)
JSR

Thursday, November 10, 2011

71 - La grandeur de la France - Os Impostores (6)

Charlemagne par Dürer
6 - La grandeur de la France...

Charles de Gaulle refugiado em Londres, discursava em 1941: "Il y a un pacte vingt fois séculaire entre la grandeur de la France et la liberté du monde". Ben alors... Vejamos, há vinte séculos ainda as tribos germânicas não tinham sido chutadas pelos Hunos sobre o Império Romano. Bastante mais tarde, os Francos subjugaram os Galo-romanos e à medida que se foi formando a França, “os reis que a fizeram” apropriaram-se de todos os territórios que puderam até à Revolução. Esta culminou com as grandes “libertações” das guerras napoleónicas e prosseguiu no Congresso de Berlim que decidiu a repartição colonial da África. Qual “pacto”?   
Quase todos os povos têm a sua arma particular para manter a coesão nacional, a ilusão da diferença, o “nós contra os outros” ou mesmo “nós contra o resto do mundo”. Uns porque são filhos dum panteão de deuses tutelares, outros são “povos eleitos” por um deus único, outros ainda têm a protecção particular dum profeta, dum iluminado, dum ídolo ou dum santo. Também houve a noção de “manifest destiny”... Todas as justificações são boas quando são um meio inofensivo de aumentar a auto-estima e são más quando pretendem ser justificação para descriminação, apropriação de recursos, guerras ou mesmo genocídio.
As nações que conseguem desenvolver durante algum tempo uma cultura dominante num certo território, apoiada pela expansão da língua, comportam-se depois por um longo período como se não se apercebessem da sua decadência. Assim como a China se viu sempre durante os altos e baixos da sua história como o “Império do Meio” do mundo, assim a França se considera desde o século XV como o reino do meio da Europa. Com alguma razão e muitas consequências.
Esse tempo já vai longe, não só para a França como para toda a Europa. Nestas convulsões da zona Euro, o presidente Sarkozy encontrou uma rara oportunidade de obter um protagonismo mais prosaico e de se abrigar à sombra da Chanceler Merkel (no sentido próprio e figurado...) para disfarçar os problemas do seu país que fazem perigar a classificação AAA do seu crédito. Todavia, as medidas de austeridade relativa que tem que impor a uma população habituada a que manifestações e greves façam recuar o governo, não convencem os mercados e poderão provocar a sua queda nas próximas eleições.
Os franceses trabalham pouco, têm férias excessivas, uma multiplicidade de sistemas para reduzir a idade da reforma e a Segurança Social é provavelmente a melhor do mundo. Tudo isto é impossível de sustentar a médio termo e o atraso das reformas indispensáveis apenas se explica pela chantagem dos sindicatos para manter os direitos adquiridos. Como resultado, a economia  perde produtividade e recua relativamente aos competidores sectoriais.
Uma das agências de rating, a S&P, acaba de difundir “por erro” a alguns dos seus clientes a informação da baixa da avaliação da França. Por erro? Não, foi um balão de ensaio. Na finança, como na política, o que parece é. O directório franco-alemão é uma ilusão confortável para ambas as partes, mas tão obviamente absurdo para os outros interessados que já ninguém o leva a sério. A França é o próximo alvo dos mercados e Monsieur Sarkozy começou a resvalar pela prancha dos condenados, sobre a amurada do navio da Eurolândia.
                                                     (continua)
JSR

Wednesday, November 9, 2011

70 - Pelea por tu igualdad - Os Impostores (5)

Hispania...
5 - Pelea por tu igualdad...

“Pelea por tu igualdad”, incita uma publicidade do PSOE na campanha eleitoral espanhola. Igualdade com quem ou com quê? Assim, à primeira vista, este slogan parece uma boa ilustração daquilo que os franceses chamam “une auberge espagnole”, onde só há (como alimento) aquilo que cada um leva consigo quando entra.
A Espanha tem estado ultimamente um pouco arredada das luzes da ribalta onde se desenrola o drama da crise das dívidas europeias. No período difícil em que os dois países ibéricos estiveram sob o fogo dos mercados, período em que o governo de Portugal se escondeu atrás da peneira da negação dos factos, a Espanha tomou as primeiras medidas para o controle das suas Cajas regionais descapitalizadas e das consequências do rebentar da bolha imobiliária.
Nessa altura Portugal funcionou como pára-raios do país vizinho. Depois, embora nenhum dos seus problemas tenha sido resolvido e a taxa de desemprego seja mesmo absolutamente insuportável (se fosse real), outros acontecimentos cooperaram para manter a Espanha na sombra: o inevitável drama grego que se desenrola em episódios de telenovela, assim como a interminável Opera Buffa italiana.
 Com todos estes divertimentos concentrando as atenções, a Espanha consegue esconder-se atrás do pano das próximas eleições, esperando assim ganhar tempo suficiente par que a cacofonia europeia dê lugar a decisões sobre o futuro da Europa. Ojalá, Oxalá, Inch’Allah. Não serve de nada, mas sempre anima exprimir o desejo que medidas positivas sejam tomadas em tempo útil.
                                                           (continua)
JSR

Tuesday, November 8, 2011

69 - Please God, make me good, but not yet - Os Impostores (4)

1/2 Sovereign
4 - Please God, make me good, but not yet...

“Por favor, Deus, faz-me bom, mas ainda não...”, uma tradução cínica e inventiva tirada das Confissões de S. Agostinho, aplica-se à forma como o Reino Unido e alguns outros países, “protestantes” em vários sentidos do termo, se relacionam com a União Europeia.
O Reino Unido não se conformou ainda com o facto de ter ganho a última guerra contra a Alemanha e ter agora uma posição subalterna na união económica. Nem se esquece que a guerra foi ganha devido ao envolvimento determinante dos Americanos a quem deixou de interessar essa “relação especial”. Entrou na Comunidade só quando já não tinha alternativas e só entrará no Euro quando se encontrar totalmente isolado e a isso for obrigado. Entretanto, para proteger a City of London e os seus outros interesses, o Reino (já pouco) Unido será uma força de bloqueio ao caminho da União Europeia para o federalismo.
Os projectos de tributação sobre os movimentos financeiros internacionais, têm sido resistidos por todos os hipócritas que são partes muito interessadas. A chamada “taxa Tobin”, uma das propostas nesse sentido, tem morrido e sido ressuscitada inúmeras vezes. Volta agora pela voz de vários dirigentes europeus, por ocasião da reunião do G20, um duplo exercício em futilidade. Tal como a intenção de acabar com a praga dos paraísos fiscais, são boas intenções de alguns que vão contra os interesses de muitos outros.
Desta vez, além dos culpados do costume, há também um inimigo do interior, a City of London. O maior centro financeiro europeu poderia ser um grande trunfo da zona Euro, mas é por agora o maior obstáculo à legislação financeira necessária à sua consolidação.
Uma união sobretudo aduaneira interessou e interessa principalmente aos países de acumulação de capital especulativo, fortes indústrias, fornecedores de tecnologia e outros produtos de grande valor acrescentado.
A união monetária interessa aos países de exportação excedentária, cuja expansão económica, se não fizessem parte da zona Euro, provocaria naturalmente  uma valorização das suas próprias moedas. Com o consequente aumento dos custos da produção, dos preços e a correspondente perda de competitividade. Assim, pertencendo a uma união monetária, conseguem evitar esses problemas disfarçando-se no meio do grupo.
Mas os países importadores e perdulários encontraram também vantagens na União e na zona Euro, entre elas a de receber os fundos de coesão e a de conseguir obter juros no mercado semelhantes aos das grandes economias excedentárias. Mas agora, em tempos de crise e de falta de credibilidade, quando se querem também continuar a disfarçar no meio do grupo para se protegerem dos juros altos das suas dívidas pedidos pelos mercados, os países mais prósperos não respeitam a reciprocidade e deixam-nos desprotegidos.
Nem todos os países europeus estão na União, nem todos os países da União estão na zona Euro, a cada qual os seus interesses egoístas. Uns não entraram sequer na União, como a Noruega do petróleo, a Suíça dos serviços financeiros muito especiais, ou a Islândia das pescas. Outros entraram, mas optaram por ficar fora da zona Euro, como a Inglaterra da Libra, ou a Suécia e a Dinamarca dos estados sociais homogéneos.
Afinal que espírito de grupo é este, a vocação da União é a de ser uma matilha de caçadores no mercado global, ou a de um rebanho de carneiros com alguns lobos disfarçados no seu meio?
                                                         (continua)
JSR

Monday, November 7, 2011

68 - Se no è vero - Os Impostores (3)

Mattia Preti, Il Cavaliere Calabrese
- A Flying Putto Seen From Behind
3 - Se no è vero...

A Itália vai ser supervisionada pelo FMI... A notícia é Berlusconesca, mas verdadeira, e mais do que isso, é um choque de mentalidades em perspectiva.  
A Itália precisa de ser melhor supervisionada de Bruxelas, o que seria desejável agora e será inevitável a médio termo. Desde a unificação italiana, que os instrumentos do governo central nunca funcionaram satisfatoriamente em todo o território. Os antigos estados mercantis e renascentistas, as antigas províncias do império Austro-Húngaro ou dos reinos de Nápoles e das Duas Sicílias, têm pouco em comum e nenhum respeito pelo poder de Roma.
A Itália está endividada como país, mas com uma população rica no Norte e nas largas zonas da economia informal que não conhece impostos. As estatísticas são pouco fiáveis, muitas das regiões são prósperas mas pouco solidárias entre elas. Uma espécie de mini-europa que precisa também de disciplina financeira e orçamental.
A falta de credibilidade dos governantes, as palhaçadas e outras orgias de Berlusconi, tornaram uma situação meramente preocupante num descalabro anunciado. Mais uma vez a incapacidade europeia de resolver os seus problemas internos.
Se non è vero, è ben trovato (se não é verdadeiro, é bem inventado). A ideia do pedido de supervisão ao FMI pareceu inicialmente uma forma pouco sincera encontrada por Berlusconi para sair do aperto em que o puseram Merkel e Sarkozi duma forma humilhante. Mas os italianos vão-se dar conta bem depressa que uma coisa é darem a volta aos inspectores da União Europeia, outra bem diferente é tentarem enganar uma missão do FMI. As declarações histriónicas esbarram no cepticismo sistemático da análise dos factos e dos números.
Como outros países europeus já se aperceberam em devido tempo, por alguma razão o FMI tem sido chamado a ser o cavalo do meio da “troika” que estabelece a condicionalidade das ajudas e verifica a implementação das medidas acordadas. Os credores exigem, as agências de rating avaliam e os mercados seguem. Nenhum primeiro ministro resiste muito tempo a esse rolo compressor. Il Cavaliere que se cuide.
                                                  (continua)
JSR

Sunday, November 6, 2011

67 - Mitteleuropa über alles - Os Impostores (2)

2 - Mitteleuropa über alles...

De cada vez que a Comunidade e depois a União Europeia, se alargaram para além do reduzido grupo de países do que se chamava a Europa Ocidental no tempo da guerra fria, tiveram que jogar com as forças opostas da coerência e da diversidade. Com cada alargamento, foram acordando também os demónios adormecidos do “espaço vital” para as grandes nações industriais.
A perda dos Impérios dos países marítimos, todos “Ocidentais”, deixou relações económicas importantes ou residuais com as antigas colónias, mas mesmo assim todos tiveram que se resignar à dependência prioritária das relações comercias de proximidade com os seus vizinhos europeus, como simples questão de sobrevivência numa competição global.
Entretanto, uma nova “Mitteleuropa” (Europa do Meio) germânica tem vindo a ser reconstituída discretamente ou de forma afirmativa (vide a divisão da Jugoslávia para que a Eslovénia e a Croácia se juntassem rapidamente à União), a fim de garantir as carruagens necessárias ao suporte manufactureiro para a locomotiva industrial alemã, assim como a sua expansão num mercado geograficamente imediato e historicamente natural.
Nesta carta geográfica renascente, a Europa do Norte e a do Oeste, trabalhadoras e previdentes, são aliados naturais enquanto mantiverem políticas fiscalmente virtuosas. Os países do Norte, ferozmente independentes e ciosos da sua homogeneidade cultural, têm a mesma forma de estar no mundo que os seus vizinhos germânicos, embora ressintam serem olhados com alguma sobranceria. Na Europa do Oeste, virada ao Atlântico, o Reino Unido tem sempre relutância em participar em projectos “continentais” até não ter alternativa, enquanto que a França tem a tradição diplomática de aproveitar todas as divisões para se manter como “um grande país” indispensável.
Já a Europa  do Sul e a do Sudeste são os parentes pródigos e recalcitrantes que se aturam com relutância. Estão apenas sob vigilância enquanto não mostram tendência a descarrilar, mas são obrigados a fazerem a penitência da austeridade quando apanhados em pecado de libertinagem orçamental. Os países da Europa do Sul, nascidos das heranças romana e imperiais, são nações  aventureiras que se governam com dificuldade, mas historicamente capazes de rasgos de esforço e resiliência quando se sentem em grande perigo. Porém, os países da Europa do Sudeste são casos mais complicados, têm uma herança de séculos de resistência, particularmente à ocupação otomana, resistência centrada nas comunidades de etnia, língua ou religião. Durante esse período perderam o sentido de pertença a uma entidade nacional comum e superior aos interesses das polis tribais.
Esta é a visão de Berlim e dos seus aliados naturais. O facto de que os países gastadores se endividaram em parte para comprar produtos dos outros países europeus, agora seus credores, não lhes confere direitos nem desculpas nem empatia. Soberania e responsabilidade nacionais estão previstas nos tratados, transferências financeiras não. Resta a solidariedade condicional.
Neste momento crítico e histórico, os destinos da Europa estão nas mãos da Sra. Merkel, uma Chanceler em declínio de autoridade no seu país e sem capacidade de impor uma estratégia política coerente para a União. Todos os outros actores que se passeiam no palco são meros figurantes.
          Es gibt kein "Rheingold" für alle in diesem “Götterdämmerung" ...
(Não há “Ouro do Reno” para ninguém, neste “Crepúsculo dos Deuses”...)
                                                           (continua)
JSR

Saturday, November 5, 2011

66 - Timeo Danaos - Os Impostores (1)

Chronos & Rhea
1 - Timeo Danaos...

Desde que o primeiro ministro grego anunciou que ia apresentar a referendo o último programa de ajuda financeira, acabado de negociar com o directório Franco-Alemão e o FMI (programa permitindo um perdão de 50% da dívida e uma gestão relativamente ordenada da falência da Grécia), que alguns têm considerado a entrada desse país na zona Euro como uma metáfora do cavalo de Tróia. Comparação demasiado fácil. Desses versos da Eneida de Virgílio vem também o aforismo “Timeo Danaos et dona ferentes” (temo os Gregos mesmo quando trazem presentes), que ignora igualmente a opinião dos próprios gregos sobre os assuntos de que são protagonistas.
Na realidade, a chantagem do referendo foi mais uma jogada desesperada de política interna, embora se revelasse rapidamente uma jogada a mais no presente xadrez estratégico europeu. O choque perigoso de duas fragilidades.
A Grécia entrou na Europa e na zona Euro mercê de vários erros de voluntarismo optimista. A primeira foi a ilusão de que um país que foi província otomana durante tantos séculos, teria ainda as hipotéticas qualidades que fizeram o berço da nossa civilização europeia comum. A segunda foi o esquecimento selectivo de que dessas qualidades nunca fez parte a capacidade de cooperação duradoura entre as cidades-estado para o bem comum. A última foi o desplante levantino na enorme falsificação das contas, no desrespeito dos tratados e acordos, que nenhum governo pode ou quer cumprir, enquanto o país for governado por tribos de oligarcas habituados a estar acima das leis, onde o pagamento de impostos é a excepção dos desprotegidos e o bem público não é considerado dever fundamental do Estado.
Papandreou pediu mais uma ajuda à União, para um país que se desmorona sob o peso da dívida e com uma população amotinada que só piora a situação. Obteve no último acordo mais uma redução dessa dívida, redução que embora seja considerada excessiva pelos credores, na realidade não resolve nada, pois o país nem com o perdão da totalidade da dívida se conseguirá tornar economicamente viável sem vários outros tipos de ajuda externa.
A Comissão Europeia lançou agora mais um ultimato, ou a Grécia se reforma e cumpre as regras aceites nos tratados e nos acordos, ou é expulsa da zona Euro e possivelmente da União. Uma imposição da disciplina indispensável, mas também uma chantagem e um insulto, sob a forma duma “supervisão permanente” que implica uma perda de soberania. Daí este primeiro acto dum drama inevitável.
Para quem não se tenha dado conta, uma acção inesperada e dramática era necessária para determinar se os gregos, para serem salvos de si próprios, aceitam ser governados como um protectorado pelos procônsules da União e por um período indeterminado, ou se preferem descer aos infernos da miséria e da desordem social. A União Europeia e os Estados Unidos já decidiram nas margens do G20 que tal não será permitido, por isso os outros actos deste drama obedecerão às boas regras do teatro internacional.
Uma analogia mais apropriada a esta situação seria a de Chronos, o deus criador do tempo, deus comum a todas as mitologias mediterrânicas, o tempo ao qual é impossível fugir e pelo qual os gregos, como todos os seus outros filhos, acabam por ser devorados mais cedo ou mais tarde.
                                                                (continua)
JSR