Gil Vicente ? |
“Quién será que no se enoje y todo mal se le antoje de una necedad tamaña. Yo no sé quién sofrirá y a quién no enhadará los desvaríos que aquí van.”
O auto de Gil Vicente está, cerca de cinco séculos depois de escrito, a ser de novo representado.
Desta vez, diante duma corte diferente, descreve-se o mesmo suplício. O Filósofo quer ocupar-se das coisas sérias, pois pressagia os tempos sombrios que estão para vir, quer que todos saibam a verdade e se comportem em homens livres. Porém, o Parvo, um bobo impertinente que trás amarrado ao pé, está sempre a interrompê-lo com perguntas e comentários… parvos. Não só na época, como sobretudo agora, filósofos e parvos são a declinar no plural...
No tempo de D. João III , beato e néscio, os problemas foram a introdução da Inquisição, que provocou a fuga dos mercadores judeus e cristãos novos, a descapitalização do reino e a necessidade de recorrer a empréstimos externos.
Seguiu-se a decadência económica, a perda das rotas comerciais mais rentáveis e, alguns anos depois, a perda efectiva da soberania nacional.
Faz lembrar alguns aspectos da situação actual ? Pergunta retórica, claro que faz. Com governantes néscios e uma grande parte do eleitorado “parvo”, é evidente que o pais tem que sofrer, e com ele todos os “filósofos” que se preocupam com a verdade da situação e o bem da coisa pública.
Com um outro tipo de inquisição agora em Portugal, a negociar as condições dos empréstimos indispensáveis, continuamos a assistir a um auto de enganos e desenganos, uma competição desequilibrada à beira do precipício, entre cartilhas repetidas até à exaustão e propostas e garantias e promessas e insultos e disparates. Entretanto os deuses descerão dos Olimpos de Washington e Bruxelas com as regras da governação e as condições do seu cumprimento.
Tudo isto vai durar até às eleições e nada indica que mudará depois. Entendimento entre os partidos sobre a partilha dos despojos? O Auto acaba assim:
“No esperéis más recado pues os es honra y provecho qu’el casamiento alongado pocas veces se vio hecho.”
JSR
Alheado das causas e desconhecedor das soluções, evidentemente fazendo parte dos caminhantes, sinto-me cada vez mais perdido pois vejo os entendidos com falta de esperança ....
ReplyDeleteNotável. Incrível como o essencial realmente não muda, nem em séculos...
ReplyDeleteMais recentemente, no ano de 1871, Eça de Queirós disse:
ReplyDelete«Estamos perdidos há muito tempo...
O país perdeu a inteligência e a consciência moral.
Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada.
Os carácteres corrompidos.
A prática da vida tem por única direcção a conveniência.
Não há princípio que não seja desmentido.
Não há instituição que não seja escarnecida.
Ninguém se respeita.
Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos.
Ninguém crê na honestidade dos homens públicos.
Alguns agiotas felizes exploram.
A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia.
O povo está na miséria.
Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente.
O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.
A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências.
Diz-se por toda a parte: “o país está perdido!”
Algum opositor do actual governo?... Não!»
Pedindo desculpa à Sarita, permito-me lançar polémica e contrariar a invocação do texto de Eça de Queiroz porque, na minha perspectiva, ele retrata uma realidade que é substancialmente diferente da que vivemos hoje e creio que ignorar esse facto só desanima os que, teimosamente, não desistem do futuro do País.
ReplyDeleteNão estamos perdidos há muito tempo, até tínhamos encontrado o caminho como demonstram os níveis de crescimento que chegámos a ter, o desenvolvimento do País em infra estruturas e, em geral, a notável melhoria dos indicadores ao nível da saúde, educação e ensino superior, para não referir saneamento básico, integração europeia, entrada no euro...
Há níveis de inteligência e preparação académica como nunca houve, a prova é a exportação de muitos milhares de jovens licenciados e o êxito conseguido por muitos cá dentro. Não podemos considerar que sejamos uma sociedade dissoluta e imoral. Somos um povo cordato e acolhedor, há até quem diga de brandos costumes. O papel solidário da sociedade civil, incluindo de inúmeras associações de jovens, tem sido essencial no amortecimento do impacto da crise. Há muitos homens públicos de grande honestidade, só que os maus exemplos é que são notícia.
A classe média é quem sustenta toda a economia, temos mais de 90% de PME'S e mais de 500 mil funcionários públicos, a que se juntam os profissionais liberais, com exemplos de grande competência e intervenção social e política.
O Estado e os serviços públicos têm dado um enorme contributo para a economia e o desenvolvimento, sobretudo nos campos da saúde e da educação, no uso de tecnologias na integração social e no desenvolvimento local.
Vivemos uma democracia, ao contrário do tempo do Eça, e só isso já é uma diferença enorme, por muito imperfeita que seja.
Suzana, não peça desculpas.
ReplyDeleteAcredito que as opiniões contrárias à nossa ajudam-nos a crescer intelectualmente.
Quanto ao Eça, permita-me discordar pois, como disse, o essencial - tal como no Auto - está no poema e realmente não muda.
6 anos, por exemplo, é muito na vida dos portugueses. Perdemos o rumo em 2005 quando, muito mal, Jorge Sampaio demitiu um governo com maioria... já nem eu me lembro a real razão para isso ter acontecido a não ser o desejo de colocar no governo alguém da sua cor... Pode discordar mas não consigo controlar os meus pensamentos que me levam sempre a esta conclusão. – “A prática da vida tem por única direcção a conveniência.”
“O pais perdeu a inteligência e a consciência moral” ao permitir todos os escândalos, e por ainda pensar que o actual governo tem o que é preciso para levar a bom porto os destinos de Portugal.
“Os caracteres estão corrompidos” – todos os dias oiço que quem é válido (ou fino, que é a expressão que mais se usa em Guimarães para qualificar o chico-espertismo) é quem está no Governo, nas empresas municipais ou nas público-privadas em cargos de nomeação politica, e esperam isso para eles também..
“Ninguém se respeita” e “não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos” - todos os dias oiço falar de casos de portugueses que recusam empregos porque ganham mais – dizem – no fundo de desemprego... são os outros portugueses, os que trabalham, que os sustentam mas para eles é aquele senhor que mora lá longe chamado Estado que paga... de onde vem o dinheiro? isso já não importa. Onde está a solidariedade?
Ninguém crê na honestidade dos homens públicos – verdade inconveniente. Um cidadão é honesto, aos olhos dos portugueses, até ao dia em que entra para a politica... Nesse dia, passa automaticamente a ser corrupto, incompetente e desonesto...
O povo está na miséria?! Não há dúvidas...
Somos acolhedores? Sim, mas também somos preguiçosos... somos cordatos? Sim, somos pacatos mas também somos pouco sensatos quando todos os indicadores dizem que o Governo se manterá....
A classe média é que sustenta a economia mas temos 500 mil funcionários públicos.. será que são precisos tantos?! Não creio num estado que é o maior empregador. Creio num estado que é regulador para a economia e que garante o essencial aos portugueses.
Vivemos em teoria numa democracia mas será que temos consciência disso!? E será que vivemos mesmo, quando tantos são prejudicados por não defenderem as cores do partido local num concelho ou numa freguesia e, são assim, obrigados a estarem calados e afastados da vida politica activa? Veremos dia 5 de Junho o poder da democracia...
Sarita, encontra de tudo isso um pouco, ou mesmo muito, nalguns casos, mas o que eu gostaria de exprimir é que não podemos continuar a "classificar" o país como se tudo estivesse igual há um século. É uma generalização que desmoraliza muito os que lutam por fazer diferente, apaga os que se distinguiram e é injusto para com gerações que, na verdade, conseguiram trazer progresso e bem estar, ao menos em proporção aos tempos de Eça. Há muita coisa errada, às vezes desesperamos? Sim, sobretudo porque passámos a ter o direito de esperar mais e melhor. Só isso já marca a diferença. E obrigada pela sua resposta, também espero que no dia 5 de Junho seja possível encontrar novos caminhos e novas esperanças e, sobretudo, que não nos façam desistir de esperar melhor!
ReplyDeleteManuel, a esperança é a última coisa a morrer ou, mais poeticamente, “hope springs eternal” (a esperança é uma nascente eterna).
ReplyDeleteSuzana, passou de moda acreditar-se na “alma nacional”, a psyché dos gregos, mas acho que basta ouvir na rádio os comentários de alguns ouvintes e julgamos continuar na idade das trevas. O país tem tido um considerável progresso material, mas nem todas as mentalidades evoluíram na mesma proporção. Esperemos que todos aqueles que acompanharam os tempos e se preocupam com o bem do país votem, tenham a lucidez e sabedoria de fazer as boas escolhas e... sejam em número suficiente.
Sara, no tempo do Eça mandavam os ingleses, que eram uns patrões mais exigentes que o FMI e o FE, porque destas organizações somos membros, embora continuem a existir uns membros mais iguais do que outros...
Por muitas razões estamos em vias de perder uma geração, entre os velhos demais para esquecerem os maus hábitos e os novos que partem para pastagens mais verdes. Mas a grande mudança está a acontecer, entre os que ficam e os que voltam, a paisagem social e económica já começou a mudança para melhor.
Acompanhei com muito interesse a partilha de opiniões e, se um pequeno post pode gerar comentários brilhantes como estes, vou tentar escrever mais, sempre na esperança de vos ver de volta e de vos ler.