Thursday, March 24, 2011

32 - A Construção da Europa

L'enlèvement d'Europe - Henri Matisse
Published 7/4/2011 by "Jornal do Fundão". 

Em relação à construção europeia, de cada vez que esta avança com um novo tratado, acordo ou pacto, levanta-se a mesma cacofonia feita das esperanças de uns e dos temores de outros, ambos geralmente excessivos.
          A realidade presente
Desta vez é a constituição e a evolução dum fundo de apoio aos países sobre-endividados (EFSF/ESM), e o facto da ocasião ser aproveitada para impor algumas medidas de boa governação (Competitiveness Pact). Isto feito com o cuidado habitual de escolher nomes e medidas politicamente correctos, porque não se pode anunciar com displicência que os países estão realmente falidos, e também para evitar confusões com a plebe terceiro-mundista que deixa efectivamente de pagar aos credores.  
O mundo, enfim, o mundo que conta, o que tem dinheiro para investir nos mercados, precisa de acreditar na mensagem que a família europeia pode ser disfuncional mas é capaz de se entender quando é preciso ajudar os membros estouvados, os que viveram demasiado tempo a usar o nome dos parentes ricos para se endividarem com crédito fácil e juros baixos.
Entre os membros problemáticos da família há o primo grego que se reformou aos quarenta e cinco anos, a sobrinha irlandesa que comprou quatro apartamentos a crédito, o genro português que só trabalha nos três meses da época turística, a nora espanhola desempregada que não tem a certeza de poder contar com a Caja local. Sem falar por enquanto dos gémeos belgas que brigam por baixo da mesa, dos tios italianos que tem negócios como icebergs, só uma pequena parte está visível acima da superfície, ou dos cunhados do Leste que... bem, há limites para a ironia destes estereótipos.
Para situar os problemas
As grandes construções imperiais do passado só foram possíveis por guerras de conquista dum povo sobre os outros. Só se mantiveram pela disciplina imposta pela força militar, por instituições politicas cimentadas numa ideologia cultural dominante e com estruturas administrativas apoiadas em teias económicas de interesses. Desagregaram-se quando essas componentes enfraqueceram.
A construção europeia tem sido feita ao contrário.
Interesses comuns primeiro, a integração dos recursos do carvão e do aço para evitar mais guerras internas, a cooperação económica para enfrentar as guerras comerciais da globalização, uma tendência federalista para manter a influência possível no mundo durante e após a guerra fria.
A ideologia comum, que distingue a Europa de tudo o mais, é a de que o estado tem que ser democrático, laico e social. Daí o perigo latente de alguns atavismos nativos e dos multiculturalismos falhados das comunidades imigradas, ambos a necessitar de firmeza na integração e no respeito dos valores europeus.
Para continuar a ser pacífica, a construção europeia tem que ser progressiva e imposta "avec aplomb ou en douce”... aos povos ignaros que não vêm mais longe que o umbigo dos seus interesses imediatos. É para isso que servem as instituições europeias.
Pacto europeu para a concorrência
O pacto europeu para a concorrência, inicialmente proposto pela Alemanha com o apoio da França, é o exemplo duma das medidas necessárias para o funcionamento do governo económico europeu. Neste caso, uma medida digamos... mal fadada por Angela Merkel. Após protestos, negociações e reuniões, o pacto tem vindo a mudar de cores como um camaleão.
A União Europeia precisa duma “coordenação” (expressão politicamente correcta para “governo”) mais eficaz nas suas políticas em geral e neste momento em particular, nas de gestão e convergência económicas. Isto inclui o alinhamento progressivo (e tão rápido quanto possível) tanto das infra-estruturas de desenvolvimento, energia, comunicações, transportes, como dos impostos dos estados sobre indivíduos e empresas, como na relação produtividade e salários, como na sobrevivência da protecção social, das pensões e da saúde.
Talvez se lhe possa chamar um pacto de convergência, com objectivos a atingir, prazos e datas, avaliação do progresso e penalizações por não cumprimento. Sem um governo económico, a Europa nem é competitiva globalmente, nem pode assegurar um crescimento comum suficiente equilibrado para se manter unida.
Porém, a União não pode, ou não deve, funcionar por “diktats”. As regras de disciplina e rigor são essenciais, mas é preciso também respeitar as boas maneiras, ou seja, através de propostas da Comissão, muitas discussões e compromissos, que permitam salvar a face aos países mais recalcitrantes, mais atrasados, ou mais mal comportados.
The Onion, a “cebola” europeia
O pacto de competitividade para a zona Euro, é visto pelos países que não são membros deste clube como o princípio duma Europa a duas velocidades. Mas é evidente que a Europa se faz a várias velocidades. Já está a ser feita, apesar dos protestos hipócritas. Nem todos os países europeus estão na União, alguns têm acordos que fazem com que pareça que estão, mas não estão, outros ainda passam pelas diferentes fases do processo de adesão. Só alguns fazem parte do acordo de Schengen, o espaço comum de livre circulação. Só alguns têm o Euro como moeda comum.
Todos afirmam querer fazer parte do “core”, do núcleo central onde estão os membros que pertencem aos três clubes, mas alguns ainda não podem e outros podem, mas os seus governos ainda não conseguiram persuadir a maioria dos seus eleitores das vantagem respectivas.
Previsivelmente, a Europa tornar-se-á como uma cebola, apresentando um aspecto exterior quase homogéneo, mas constituída por várias camadas concêntricas, agregadas e diferentes. Na melhor das hipóteses esse conjunto fará chorar quem quer que o queira separar...
A UE não é como os USA, não tem nem um governo federal, nem as políticas correspondentes. Tudo se faz com mais dificuldade, complexidade e confusão. Por um lado, a União está mais avançada em alguns sectores, como por exemplo nas políticas sociais, pois é muito preferível estar desempregado, doente ou reformado nos países europeus do que nos USA. Por outro lado, o seu custo é também um handicap, uma desvantagem competitiva, em relação ao resto do mundo. 
     Encontrar o melhor equilíbrio é uma questão de tentativas, de ir fazendo o melhor possível de cada vez e de não hesitar em corrigir os erros e os excessos, assim que estes se tornam evidentes.
JSR

5 comments:

  1. Gostei muito do post. O problema com a correcção dos erros prende-se mesmo com os "membros problemáticos da familia europeia", os que pensam que apenas têm direitos e nenhuma obrigação. O equilibro existiria caso todos, sem excepção, cumprissem com as suas obrigações, mantendo os seus direitos. Estudos recentes mostram que, por exemplo em Portugal, todos os dias faltam ao trabalho cerca de 500 mil portugueses. Ora, sem produção não há riqueza e quando não se repõe o que se gasta, por norma, decreta-se falência.

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  2. Excelente post, como sempre.
    Se todos os países da europa fossem iguais aos alemães, ou aos nórdicos, ou se todos os países tivessem nascido ao mesmo tempo como os estados federais americanos, a construção da Europa não teria precisado de séculos de guerras, de invasões, de milhões e milhões de mortos.Portanto, a "construção europeia", com essa matriz comum de que o "estado tem que ser democrático, laico e social" terá a mior dificuldade em apagar essas diferenças de comportamento e até as várias leituras do que seja ser "democrático", ou laico, ou social. Do mesmo modo que não apaga as diferenças entre ser rico ou ser pobre em cada um desses países, ou o modo como se estruturam as famílias e os mercados de trabalho respectivos. Não sei se a actual europa do euro sobreviverá ou se, sobrevivendo, não se apagarão alguns dos países que a contêm e que orgulhosamente entraram no pelotão da frente. Mas uma coisa parece evidente, e essa é a de que a ficção de que podemos todos funcionar nos mesmos padrões e com a mesma mentalidade, a partir de regras de gestão centralizadas, não resiste à realidade. sobretudo depois de passados os anos gloriosos do acesso aos fundos comunitários, que disfarçaram os abismos.

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  3. Os comentários inteligentes, sobretudo os que são feitos directamente no post, dão mais sentido ao tempo passado diante do computador por quem o escreveu.
    Para um país pequeno, bastante homogéneo, onde a literacia é quase universal, torna-se realmente surpreendente verificar que muitos dos nossos concidadãos não tenham ainda aprendido, nem o conceito de que o Estado não são “eles” mas “nós”, nem a elementar relação de causa e efeito entre o exercício dos direitos e o cumprimento das obrigações.
    Existem disparidades enormes entre os estados americanos, vários estão falidos, e mesmo dentro de cada estado há “counties” e cidades arruinados. Como na Europa e como nos países europeus. Mas em quase tudo o resto a Europa é efectivamente diferente. Velhas culturas concorrentes, muitas das quais ainda não digeriram antigas soberbas imperiais. Além dos pontos de matriz comum, a maior fonte de optimismo é, curiosamente, o cimento negativo: nada mais eficaz para unir do que ter inimigos comuns. Para todos os europeus, esses não faltam, esperemos que seja a origem do tal sobressalto de sobrevivência.

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  4. A minha cultura socio politica deve ser muito abaixo da média.Não acredito nos nossos políticos. Não acredito na bondade das suas afirmações e na prática diária.A queda deste governo não foi mais do que o resultado dum egocentrismo atroz. O apelo a uma maioria absoluta é um embuste pois não não temos nós e os nossos(?) representantes políticos maturidade suficiente para evitar desmandos, compadrios e desvios inaceitáveis de comportamento social.Se tanta gente fala de que o problema do governo foi a atitude do primeiro ministro porque é que o PS o renomeou secretário geral com 93% dos votos? Será que a maioria dos socialistas estão dependentes dessa tal atitude. Acabe-se o PS já. Será que o futuro é manter a estrutura social dependente de partidos? Há outras formas de se viver em comunidade?

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  5. O facto de não acreditar nos políticos que temos (ou pelo menos em muitos deles) não significa ter uma cultura sócio-política abaixo da média. Significa que temos que lutar por um regime constitucional melhor e ter maior exigência em relação àqueles que nos representam. O comício do PS (a que chamaram Congresso) foi um exemplo dum clube que se podia chamar: "Os Unidos à Volta do Tacho", uma vergonha nacional.

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