Sunday, March 6, 2011

28 - Exegese sobre “Hai Moũsai”

Portrait of a Scribe
 by Bartolomeo Passarotti
O blog das “Musas” associado a este, começou discretamente, provocando só alguns e-mails de simpatia de vez em quando. Ultimamente, porém, tem sido objecto de mensagens mais frequentes com comentários interessantes, críticos, algumas vezes provocantes e ocasionalmente com análises exegéticas.
Um comentário frequente é a “coragem” de ter, manter, revelar, um blog de poemas... Se é que a esses textos se pode chamar poemas. Através das palavras amáveis, reconhece-se ainda a prevenção contra a etiqueta de sonhador que pode ser colada a quem o faz e portanto prejudicial a uma reputação de seriedade. Pois, apesar do nosso admirável mundo novo ser feito de criatividade em tudo, na ciência, na tecnologia, na economia, na comunicação, resta que no subconsciente colectivo a seriedade está ainda ligada a uma certa arrogância ou presunção, à falta de humor, em resumo a uma personalidade intensamente chata...
Na realidade, ter a capacidade de escrever um poema ocasional, é o equivalente a tomar uma nota rápida dum acontecimento, concentrado com as emoções e reflexões correspondentes, um código na cápsula do tempo, uma história em meia dúzia de linhas. Serve também como auto-análise, eficaz, barata e sem risco de indiscrições...
Outro comentário, o facto dos poemas serem escritos em várias línguas. A surpresa só pode ser relativa, pois o anonimato também relativo dos blogues permite contudo perceber o multi-culturalismo do autor, ao qual corresponde naturalmente uma pluralidade de idiomas. No blog das musas vão aparecendo aqueles que se manifestam espontaneamente, embora a forma tenha por vezes outras influências.
Mas foi “The Bearings of Home” que rebentou com a escala para os leitores de língua não inglesa. Primeiro, exigiram uma tradução do título, foram ver “bearings” ao dicionário e ficaram confusos com a tradução literal: “rolamentos”. Os rolamentos de casa?!... Bem, há outros significados, como orientação, rumo, fazer o ponto. Mas depois do título, havia ainda demasiadas perguntas para responder. Mais simples, embora com relutância, “cometer” uma tradução completa. Mais simples?
Cada idioma tem as suas linhas de evolução do pensamento, o seu ritmo, a sua lógica. Traduzir é sempre uma traição, pior ainda se for cometida pelo próprio. Mesmo os idiomas que se aprendeu em criança, nos quais se pensa e se sonha, vivem em compartimentos separados do cérebro. Exactamente como convivem as competências profissionais e a apreciação ou a prática das artes.
As línguas comunicam entre si, mas numa correspondência ocasional e imperfeita, que pode ser frustrante quando se tenta transferir uma expressão duma língua para outra. Por exemplo: em “the sounds of winds hurling through the coastal mountains”, como traduzir “hurling” que significa “atirar” geralmente com ruído? Em comparação, "Wuthering Heights" de Emily Brontë (wuthering, onomatopeia do vento que faz wuuuu...) foi traduzido em francês por "Les Hauts de Hurlevent" (hurlevent, o vento que grita), mas em português deu "O Monte dos Vendavais". Nada corresponde exactamente.
As reacções à tradução foram a única parte agradável, mesmo motivante: sugestões de melhores expressões e termos mais apropriados para preservar o tom e o ritmo. Nesta exegese detecta-se uma profundidade e complexidade do pensamento que passaram despercebidas no original, mesmo a quem o escreveu. As ideias e as palavras fluem naturalmente, fruto de uma maturação anterior, nem sempre totalmente consciente. Ao tentar traduzir, “home” pode não ser nem casa nem lar, “bereft” não é só uma falta, “far-fetched” é uma improbabilidade absurda.
O quadro descrito por uma tradução é sempre uma cópia pálida do mundo vivo evocado pelo original. Mas a cooperação na tradução pode trazer a excitação duma investigação policial: que ideias subversivas estará este sujeito realmente a transmitir? Para quem queira realmente saber, um poema é sempre uma tentativa de resposta à pergunta recorrente sobre a razão de existir.
JSR

2 comments:

  1. Uma vez António Lobo Antunes disse que ficava muito admirado com os debates que ouvia sobre os seus livros, a maior parte da sinterpretações nunca lhe tinham passado pela cabeça! Um autor, e ainda mais um poeta, tem que ser corajoso, pois não é coragem deixar que os outros se apropriem da sua inspiração e a façam sua? A tradução está óptima, não seja por essas dificuldades que o poeta desiste...com prejuízo dos seus (às vezes) silenciosos mas fiéis leitores.

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  2. É bem verdade (a primeira parte)... e bem "flatteur" (a segunda)... Obrigado pelo comentário e pelo encorajamento.

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