Monday, December 20, 2010

12 - No Congelador (The Big Freeze)

The Big Freeze
Published 30/12/2010 by "Jornal do Fundão"

A Europa do Norte congelou no princípio das férias do Natal e a previsão meteorológica indica que não vai descongelar até ao fim do ano. Os ingleses chamam-lhe “the big freeze”. Os aeroportos encerraram, os comboios pararam e as estradas entupiram. Podem ser os ciclos normais do clima, pode ser o aquecimento global que extrema as variações sazonais, pode ser o planeta Terra a lembrar que a humanidade não é mais do que uma espécie de progressão bolorenta na casca duma maçã.  
Contam os mais velhos que antigamente era assim, o que quer que eles (e sobretudo elas, que vivem mais tempo) queiram dizer por “antigamente” e “assim”. Mas antigamente não havia milhões de pessoas a deslocarem-se para se reunir com as famílias nesta época do ano, pessoas encalhadas no percurso, exasperadas, por vezes irracionais. Quando nevava assim e tudo gelava, as pessoas ficavam em casa, com a família e na sua comunidade. Antigamente as pessoas não ficavam surpreendidas que ninguém mais se ocupasse delas, não ficavam desamparadas sem o “big brother” que tudo resolve, não ficavam dependentes da possível responsabilidade de outrem para as ajudar.
O rigor do Inverno sempre concentrou as atenções de todos, geração após geração, pois a selecção natural favorecia a sobrevivência dos previdentes, dos que em devido tempo semeavam, colhiam, amealhavam. Esses ultrapassavam os períodos de frio, as secas, e mesmo as longas viagens de exploração. Alguns dos descendentes desses sobreviventes degeneraram. Atiram-se ao caminho sem se prepararem, sem se informarem se as estradas estão transitáveis, se os comboios podem partir, se os voos estão confirmados. É evidente que alguns não têm escolha, mas à maioria falta-lhes discernimento. Depois queixam-se das consequências, algumas vezes com razão, muitas vezes sem ela.
Na Europa do Sul há outros problemas, mas pelo menos o clima é menos rigoroso. As cigarras vão sobrevivendo, mesmo que as formigas do Norte já estejam fartas de contribuir para as sustentar, o equilíbrio ecológico (e económico...) necessita da diversidade. Os aeroportos raramente fecham por causa do tempo, a natureza fez deles um melhor “hub” ou trampolim transcontinental, não faz sentido geográfico que um passageiro entre Lisboa e as Américas tenha que andar para trás para passar por Londres, Frankfurt ou Paris. Mas como é nestas cidades que se concentram a maioria dos passageiros e das actividades económicas, a geografia natural passa a segundo plano em relação à oferta de bilhetes das linha aéreas nos períodos mais procurados.
E assim vão os nómadas contemporâneos, dormindo no chão dos aeroportos, nas estações ferroviárias ou rodoviárias, nos automóveis ou em qualquer ponto do caminho. Comendo as últimas bolachas e bebendo a última garrafa de água, dos restaurantes e das máquinas de venda automática. Alguns mais informados ficaram nas suas casas, à espera de uma aberta que os deixe partir. Mas a migração não pára, no fim do caminho está a reunião com a família, a relva que é sempre mais verde do outro lado, a terra prometida.
Porque é o Solstício de Inverno, quando as horas de luz começam a aumentar em relação às horas das trevas, a memória ancestral faz renascer a esperança contra todas as evidências do mau tempo que faz. Porque, mesmo que não se consiga observar o eclipse da Lua, sabemos que a “Casta Diva” continua impávida acima das núvens. Porque podemos sempre ouvir a encantação da Callas na “Norma” de Bellini, para tornar os atrasos mais suportáveis. Porque faz parte da natureza humana nem sempre ser racional. Porque todos esperamos chegar a tempo ao destino.
JSR

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