Friday, December 31, 2010

15 - A Rapariga do Oeste

Puccini - La Fanciulla del West
O Met (Metropolitan Opera de New York) apresentou na antevéspera do Ano Novo a ópera de Puccini “La Fanciulla del West”, com Deborah Voigt, Marcello Giordani e Lucio Gallo, maestro Nicola Luisotti. Barbara Voigt, no papel de Minnie, é substituída nos dias 3 e 8 de Janeiro pela soprano portuguesa Elisabete Matos.
Uma ópera acerca do Far West, dos cowboys que largaram as manadas de vacas para a corrida ao ouro da Califórnia, da rapariga chamada Minnie que dirige um saloon e que cita a bíblia para convencer o xerife e os mineiros a não enforcarem o bandido que ama, é uma história diferente por se referir ao imaginário americano em vez de usar os librettos clássicos europeus. Mas não só. Nesta história não morre ninguém, tem um happy ending moralista, obrigação continuada depois nos filmes de Hollywood, incluindo os de um certo Disney e o seu casal de ratos, Mickey e Minnie.
Esta ópera teve a sua première espectacular no Met em 1910, supervisionada pelo próprio Puccini, com a orquestra conduzida por Toscanini, e com Enrico Caruso, Emmy Destinn e Pasquale Amato nos papéis principais. Depois disso, tem sido representada raramente e com grandes intervalos entre as produções. Mas sempre com grande sucesso critico e entusiasmo dos espectadores.
Vem a propósito mencionar o patrocínio das artes na América. Olhar para as paredes dos átrios ou ler o catálogo do Met, são compêndios de como a economia se torna instrumento de promoção social, quanto custa em doações ser chairman (ou chairwoman) do Board of Directors (US$30 milhões), co-chair e as diferentes categorias de directores (de 20 a 1 milhão), escritos com letras cada vez mais pequenas, de tamanho correspondente à contribuição, abaixo disso já não se consegue ler. Depois há todos os comités e as produções, tratados de forma semelhante e com doações adicionais. Todas as contribuições são bem vindas, evidentemente, angariadas com engenho e arte, deduzidas dos impostos, mas abaixo de um milhão desaparecem do radar do reconhecimento público...
Como se pode perceber através do angelismo natural num libretto de ópera, a América não é para os tímidos. Ainda hoje a maioria dos cidadãos que votam querem manter o espírito de fronteira, o direito a lutar por um lugar ao Sol, onde tudo é possível para quem conseguir sobreviver, mas quem falha, morre. O mais discretamente possível, please, para não incomodar o trabalho e o enjoyment dos outros. 
Sem outros comentários, sem comparações e sem julgamentos de valor. 
JSR

Tuesday, December 28, 2010

14 - As Tormentas e as Esperanças do Nosso Tempo

Georgetown on the Potomac
A percepção de todas as coisas muda com a perspectiva do observador. Visto de Washington, de Paris, de Lisboa ou de qualquer outro lugar, o mundo não só parece diferente, como é efectivamente diferente.
Nas lojas de souvenirs de Georgetown vendem um mapa do mundo como ele é supostamente visto pela classe politica americana dentro da “beltway”, a auto-estrada circular da capital. É suposto ser uma ironia, uma piada, mas esconde verdades incómodas. Nesse mapa, onde os Estados Unidos ocupam a quase totalidade do espaço, o Canada, o México e todo o resto das Américas aparecem como pequenos apêndices incómodos. Para Nascente, há uma fatia de mar com uns relevos no horizonte onde se destacam a Nordeste umas ilhotas chamadas Inglaterra, Alemanha, França e uma massa indiscriminada de Europa. Ainda mais longe uma espécie de nuvem negra, a Rússia que ainda não deixou de ser o império do mal. Mais para Sudeste, um relativamente grande estado de Israel, rodeado de poços de petróleo povoados por beduínos irritantes. No Sul, o pequeno buraco da África. Do lado Poente, uma fatia maior de mar com as ilhotas de Hawaii, do Japão e da China com uma linha de horizonte cheia de olhos em bico a espreitar. Um mapa que se pretende cómico, mas que é dissimuladamente instrutivo e mesmo preocupante em tempos de crise.
A crise da Europa (desenvolvimento económico e credibilidade orçamental), não é a mesma da América (onde a fábrica de fazer dólares transfere os custos do endividamento excessivo para fora das fronteiras), nem a dos países em desenvolvimento (que disfarçam as suas deficiências estruturais e sócio-económicas dando-lhes nomes criativos) ou a dos pseudo-estados onde as únicas coisas não virtuais são a guerra, a corrupção, a pobreza e a desesperança.
Os meios de comunicação actuais pretendem que o presente modelo de civilização está a chegar ao fim, que a democracia política e a economia liberal estão em decadência. Porém, basta ler uns livros de História para saber que cada época tens as suas crises e os seus desafios. Nunca são iguais, mas pode-se sempre aprender alguma coisa para tentar evitar cometer erros semelhantes. Sugerem também que é nas fronteiras distantes dos impérios que as mudanças aparecem com maior clareza e gravidade ou que é nos países periféricos que as resistências se esgotam primeiro.
Tal como a evolução da vida, as sociedades avançam por tentativas, há caminhos que acabam em becos sem saída, que recomeçam noutro lugar ou voltam a um ponto mais atrás. Tudo é composto de repetições, estagnação, recuos e avanços. De cada vez que a luz da civilização brilhou mais forte num local, todos os bárbaros se sentiram atraídos, acabaram por a invadir, a abafar, a fizer retroceder, até mais tarde voltar a brilhar de novo para um espaço maior e recomeçar o ciclo.
No presente, estamos para lá do ciclo da civilização eurocêntrica. A Europa espalhou pelo mundo a sua cultura, que de boa vontade ou relutantemente, foi assimilada até certo ponto. Hoje, todos os países têm um grupo social, geralmente a elite político-económica, que tem o mesmo modelo, digamos “ocidental”, como referência. Da mesma forma que no império romano existiam elites romanizadas com graus de cultura e qualidade de vida equivalentes, mas em percentagens muito diferentes segundo as regiões, assim acontece com os países actuais. Se nos países da Europa e nos estados da América do Norte a grande maioria da população vive de forma bastante igual, essas percentagens vão descendo com o grau de desenvolvimento de cada região, até níveis residuais nos países menos desenvolvidos, ou não existem efectivamente nos estados falhados.
         A comunidade internacional tem uma “civilização” comum, embora de origens culturais diferentes. Falam as mesmas línguas, têm as mesmas referências universitárias, lêem os mesmos livros, exprimem opiniões de forma semelhante sobre o estado do mundo, embora as convicções e pontos de vista possam ser diferentes. Tudo é uma questão de percentagem de gente com uma “civilização” comum, em cada região do mundo.
Esta crise vai passar, como todas as outras crises anteriores e as crises seguintes. No caminho, irá fazendo desaparecer progressivamente conceitos que se julga hoje indispensáveis, como os de equilíbrio geoestratégico, de equidade económica, de nação-estado. Mudando coisas que parecem pequenas mas que virão a revelar-se fundamentais no futuro, como a correlação cada vez maior entre saber e riqueza, entre ignorância e pobreza, numa linha de quebra cada vez mais larga e cada vez mais transversal a continentes e fronteiras. Mantendo aquilo que é consequência da natureza humana, como as superstições colectivas que cimentam as sociedades e mantêm os correspondentes antagonismos, assim como o apego à propriedade individual, sem a qual não há esforço para criar riqueza que possa depois ser parcialmente repartida. Tudo isto são consequências imparáveis da globalização.
Vista de Washington, a Europa é o único parceiro natural nesta evolução, com a mesma comunidade de objectivos e valores. Com diferenças por vezes irritantes, como a cacofonia nas organizações internacionais e os nacionalismos retrógrados na participação nos negócios do mundo. Com o conforto da familiaridade das qualidades e defeitos. As diferenças nacionais são exploradas sem remorsos para obter vantagens económicas, forçar decisões e estabelecer parcerias. Neste contexto, Portugal não é um pais importante, mas também não é um país insignificante, embora esta constatação, tal como transparece no tal mapa humorístico que se encontra em Georgetown, se aplique a muitos outros países. Todas as coisas são relativas e as crises também.
Cada tempo histórico tem as suas tormentas, todas as tormentas acabam por passar. O que parece agora importante é a responsabilidade das gerações presentes e o legado que irão deixar aos que virão a seguir. Mas todas as crises constroem as suas esperanças, a crise presente pode ser a provação que fortalece a integração europeia e o reconhecimento da interdependência global. A oportunidade de tomar as decisões certas no tempo possível, o aproveitar da ocasião que não voltará nos mesmos termos, são comuns aos grandes impérios e aos pequenos países, às colectividades como aos indivíduos. Do the right thing. Se cada um fizer o seu dever dentro das suas capacidades, o mundo em que vivemos poderá tornar-se melhor.  São estes os votos para o novo ano.
JSR

Sunday, December 26, 2010

13 - O Temporal (The Blizzard)

The House in Bethesda
Após o mau tempo na Europa, o mau tempo na América… “a blizzard looms for East Coast”.
No intervalo, a família dos dois lados do Atlântico conseguiu finalmente reunir-se em Bethesda (Washington) para o Natal.
Mas agora o Ano Novo em Nova York está sob aviso da meteorogia: “the storm bringing a rare white Christmas to the South will turn into a blizzard across the mid-Atlantic and New England, a nightmare awaits holiday travelers”.
Significativo, como uma tempestade de neve é considerada pelos ingleses como um “big freeze” e pelos americanos um “blizzard”. A diferença é mais do que semântica, é da própria natureza e também da cultura. No congelador dum lado, um temporal do outro.
Um oceano no meio.
JSR

Monday, December 20, 2010

12 - No Congelador (The Big Freeze)

The Big Freeze
Published 30/12/2010 by "Jornal do Fundão"

A Europa do Norte congelou no princípio das férias do Natal e a previsão meteorológica indica que não vai descongelar até ao fim do ano. Os ingleses chamam-lhe “the big freeze”. Os aeroportos encerraram, os comboios pararam e as estradas entupiram. Podem ser os ciclos normais do clima, pode ser o aquecimento global que extrema as variações sazonais, pode ser o planeta Terra a lembrar que a humanidade não é mais do que uma espécie de progressão bolorenta na casca duma maçã.  
Contam os mais velhos que antigamente era assim, o que quer que eles (e sobretudo elas, que vivem mais tempo) queiram dizer por “antigamente” e “assim”. Mas antigamente não havia milhões de pessoas a deslocarem-se para se reunir com as famílias nesta época do ano, pessoas encalhadas no percurso, exasperadas, por vezes irracionais. Quando nevava assim e tudo gelava, as pessoas ficavam em casa, com a família e na sua comunidade. Antigamente as pessoas não ficavam surpreendidas que ninguém mais se ocupasse delas, não ficavam desamparadas sem o “big brother” que tudo resolve, não ficavam dependentes da possível responsabilidade de outrem para as ajudar.
O rigor do Inverno sempre concentrou as atenções de todos, geração após geração, pois a selecção natural favorecia a sobrevivência dos previdentes, dos que em devido tempo semeavam, colhiam, amealhavam. Esses ultrapassavam os períodos de frio, as secas, e mesmo as longas viagens de exploração. Alguns dos descendentes desses sobreviventes degeneraram. Atiram-se ao caminho sem se prepararem, sem se informarem se as estradas estão transitáveis, se os comboios podem partir, se os voos estão confirmados. É evidente que alguns não têm escolha, mas à maioria falta-lhes discernimento. Depois queixam-se das consequências, algumas vezes com razão, muitas vezes sem ela.
Na Europa do Sul há outros problemas, mas pelo menos o clima é menos rigoroso. As cigarras vão sobrevivendo, mesmo que as formigas do Norte já estejam fartas de contribuir para as sustentar, o equilíbrio ecológico (e económico...) necessita da diversidade. Os aeroportos raramente fecham por causa do tempo, a natureza fez deles um melhor “hub” ou trampolim transcontinental, não faz sentido geográfico que um passageiro entre Lisboa e as Américas tenha que andar para trás para passar por Londres, Frankfurt ou Paris. Mas como é nestas cidades que se concentram a maioria dos passageiros e das actividades económicas, a geografia natural passa a segundo plano em relação à oferta de bilhetes das linha aéreas nos períodos mais procurados.
E assim vão os nómadas contemporâneos, dormindo no chão dos aeroportos, nas estações ferroviárias ou rodoviárias, nos automóveis ou em qualquer ponto do caminho. Comendo as últimas bolachas e bebendo a última garrafa de água, dos restaurantes e das máquinas de venda automática. Alguns mais informados ficaram nas suas casas, à espera de uma aberta que os deixe partir. Mas a migração não pára, no fim do caminho está a reunião com a família, a relva que é sempre mais verde do outro lado, a terra prometida.
Porque é o Solstício de Inverno, quando as horas de luz começam a aumentar em relação às horas das trevas, a memória ancestral faz renascer a esperança contra todas as evidências do mau tempo que faz. Porque, mesmo que não se consiga observar o eclipse da Lua, sabemos que a “Casta Diva” continua impávida acima das núvens. Porque podemos sempre ouvir a encantação da Callas na “Norma” de Bellini, para tornar os atrasos mais suportáveis. Porque faz parte da natureza humana nem sempre ser racional. Porque todos esperamos chegar a tempo ao destino.
JSR