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Georgetown on the Potomac |
A percepção de todas as coisas muda com a perspectiva do observador. Visto de Washington, de Paris, de Lisboa ou de qualquer outro lugar, o mundo não só parece diferente, como é efectivamente diferente.
Nas lojas de souvenirs de Georgetown vendem um mapa do mundo como ele é supostamente visto pela classe politica americana dentro da “beltway”, a auto-estrada circular da capital. É suposto ser uma ironia, uma piada, mas esconde verdades incómodas. Nesse mapa, onde os Estados Unidos ocupam a quase totalidade do espaço, o Canada, o México e todo o resto das Américas aparecem como pequenos apêndices incómodos. Para Nascente, há uma fatia de mar com uns relevos no horizonte onde se destacam a Nordeste umas ilhotas chamadas Inglaterra, Alemanha, França e uma massa indiscriminada de Europa. Ainda mais longe uma espécie de nuvem negra, a Rússia que ainda não deixou de ser o império do mal. Mais para Sudeste, um relativamente grande estado de Israel, rodeado de poços de petróleo povoados por beduínos irritantes. No Sul, o pequeno buraco da África. Do lado Poente, uma fatia maior de mar com as ilhotas de Hawaii, do Japão e da China com uma linha de horizonte cheia de olhos em bico a espreitar. Um mapa que se pretende cómico, mas que é dissimuladamente instrutivo e mesmo preocupante em tempos de crise.
A crise da Europa (desenvolvimento económico e credibilidade orçamental), não é a mesma da América (onde a fábrica de fazer dólares transfere os custos do endividamento excessivo para fora das fronteiras), nem a dos países em desenvolvimento (que disfarçam as suas deficiências estruturais e sócio-económicas dando-lhes nomes criativos) ou a dos pseudo-estados onde as únicas coisas não virtuais são a guerra, a corrupção, a pobreza e a desesperança.
Os meios de comunicação actuais pretendem que o presente modelo de civilização está a chegar ao fim, que a democracia política e a economia liberal estão em decadência. Porém, basta ler uns livros de História para saber que cada época tens as suas crises e os seus desafios. Nunca são iguais, mas pode-se sempre aprender alguma coisa para tentar evitar cometer erros semelhantes. Sugerem também que é nas fronteiras distantes dos impérios que as mudanças aparecem com maior clareza e gravidade ou que é nos países periféricos que as resistências se esgotam primeiro.
Tal como a evolução da vida, as sociedades avançam por tentativas, há caminhos que acabam em becos sem saída, que recomeçam noutro lugar ou voltam a um ponto mais atrás. Tudo é composto de repetições, estagnação, recuos e avanços. De cada vez que a luz da civilização brilhou mais forte num local, todos os bárbaros se sentiram atraídos, acabaram por a invadir, a abafar, a fizer retroceder, até mais tarde voltar a brilhar de novo para um espaço maior e recomeçar o ciclo.
No presente, estamos para lá do ciclo da civilização eurocêntrica. A Europa espalhou pelo mundo a sua cultura, que de boa vontade ou relutantemente, foi assimilada até certo ponto. Hoje, todos os países têm um grupo social, geralmente a elite político-económica, que tem o mesmo modelo, digamos “ocidental”, como referência. Da mesma forma que no império romano existiam elites romanizadas com graus de cultura e qualidade de vida equivalentes, mas em percentagens muito diferentes segundo as regiões, assim acontece com os países actuais. Se nos países da Europa e nos estados da América do Norte a grande maioria da população vive de forma bastante igual, essas percentagens vão descendo com o grau de desenvolvimento de cada região, até níveis residuais nos países menos desenvolvidos, ou não existem efectivamente nos estados falhados.
A comunidade internacional tem uma “civilização” comum, embora de origens culturais diferentes. Falam as mesmas línguas, têm as mesmas referências universitárias, lêem os mesmos livros, exprimem opiniões de forma semelhante sobre o estado do mundo, embora as convicções e pontos de vista possam ser diferentes. Tudo é uma questão de percentagem de gente com uma “civilização” comum, em cada região do mundo.
Esta crise vai passar, como todas as outras crises anteriores e as crises seguintes. No caminho, irá fazendo desaparecer progressivamente conceitos que se julga hoje indispensáveis, como os de equilíbrio geoestratégico, de equidade económica, de nação-estado. Mudando coisas que parecem pequenas mas que virão a revelar-se fundamentais no futuro, como a correlação cada vez maior entre saber e riqueza, entre ignorância e pobreza, numa linha de quebra cada vez mais larga e cada vez mais transversal a continentes e fronteiras. Mantendo aquilo que é consequência da natureza humana, como as superstições colectivas que cimentam as sociedades e mantêm os correspondentes antagonismos, assim como o apego à propriedade individual, sem a qual não há esforço para criar riqueza que possa depois ser parcialmente repartida. Tudo isto são consequências imparáveis da globalização.
Vista de Washington, a Europa é o único parceiro natural nesta evolução, com a mesma comunidade de objectivos e valores. Com diferenças por vezes irritantes, como a cacofonia nas organizações internacionais e os nacionalismos retrógrados na participação nos negócios do mundo. Com o conforto da familiaridade das qualidades e defeitos. As diferenças nacionais são exploradas sem remorsos para obter vantagens económicas, forçar decisões e estabelecer parcerias. Neste contexto, Portugal não é um pais importante, mas também não é um país insignificante, embora esta constatação, tal como transparece no tal mapa humorístico que se encontra em Georgetown, se aplique a muitos outros países. Todas as coisas são relativas e as crises também.
Cada tempo histórico tem as suas tormentas, todas as tormentas acabam por passar. O que parece agora importante é a responsabilidade das gerações presentes e o legado que irão deixar aos que virão a seguir. Mas todas as crises constroem as suas esperanças, a crise presente pode ser a provação que fortalece a integração europeia e o reconhecimento da interdependência global. A oportunidade de tomar as decisões certas no tempo possível, o aproveitar da ocasião que não voltará nos mesmos termos, são comuns aos grandes impérios e aos pequenos países, às colectividades como aos indivíduos. Do the right thing. Se cada um fizer o seu dever dentro das suas capacidades, o mundo em que vivemos poderá tornar-se melhor. São estes os votos para o novo ano.
JSR